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O meu tio Zé

06/08/2014

O meu tio era um homem bom. Por isso é que fez o que fez. Digo-o assim, sem hesitações, não para desculpá-lo da decisão que tomou, não para torná-lo imune a um conjunto de falências que lhe possam apontar como uma lista de compras. Digo-o porque talvez me seja mais fácil compreender a lógica oculta por detrás do erro. Porque somos sempre muito rápidos a julgar e a catalogar e tão demorados a trocar de pele com os outros. Digo-o para que o erro do meu tio não tenha como solução outros erros mais cruéis e menos escrupulosos.
Falar do meu tio é difícil. Não sei se tudo o que me vem à cabeça quando penso nele é verdade ou é inventado pela necessidade de dar voz a um homem simples que só a teve no silêncio. Perseguir as memórias que me deixou é como correr atrás dum chapéu-de-sol desgovernado pelo vento numa praia cheia de sol, de gente e de sueste. Tanto pode magoar muitas pessoas nessa praia – a minha mãe, o meu irmão, o meu outro tio, os meus primos e os meus tios-avôs – como trazer luz e calor ao inverno prolongado e rigoroso das saudades que deixou de herança.
Dizem-me, com sorrisos que não chegam a preencher metade dos lábios:
– O teu tio era um homem bom, mas, sabes, às vezes, metia-se nos copos.
Confunde-me a intransigência de tanta delicadeza. Uma espécie de riso e choro ao mesmo tempo. É como se me fosse proibido saber uma parte misteriosa da história. Uma parte que nega a outra e impede o meu tio de ser considerado um homem igual aos outros. É como se me dissessem:
– O teu tio tinha o jogo dele, mas, às vezes, fazia batota.
Como se não fizéssemos todos batota na hora de enfrentar as regras mais tristes da nossa existência.
Sei porque é que me dão estas respostas. O meu tio não gostava da escola. Faltava muito. Preferia andar pelos cerros a enfeixar braçados de lenha nos lombos dos cães. Brincou pouco. Não salvou ninguém das portas da morte, não descobriu planetas ou constelações, nem calculou nenhuma fórmula científica para a erradicação dos grandes podres do planeta. Não esquartejou átomos, não encontrou nenhuma espécie de invertebrado por catalogar, não comandou homens numa guerra, não trouxe avanços diplomáticos à resolução do conflito israelo-árabe, não era um artista, nem da expressão do amor em coisas belas, nem da perversão consentida da palavra no desempenho de cargos políticos, embora se gabasse de ser sempre dos primeiros a votar em dia de eleições.

Nasceu pobre e continuou sempre assim, aos pontapés do desinteresse alheio, exceptuando para trabalhos pesados, duros e malcheirosos, como daquela vez em que apareceu em casa com o corpo todo a ranger de dores e a tresandar a… Bem, nem vale a pena contar. Os tipos com cara de prisão de ventre que o contrataram, sem lhe pagar o serviço, claro, porque eram todos amigos e essas tretas com que se enganam os pobres diabos, saberão disto melhor do que eu. Perguntem-lhes, se quiserem. Tenho apenas a intenção de dizer que o destino do meu tio deve ter sido escrito por um punho tão leve e desajeitado que não seria necessário uma borracha para apagar a anotação com o nome dele nas margens do grande livro de registos da Humanidade. Bastaria humedecer o mindinho na ponta da língua e esfregar uma vez na folha branca e já estava: poeira interestelar, o vazio infinito de um átomo, acabava-se o meu tio.
Mas o meu tio era um homem bom. Mesmo! Pode ter sido um nome calado nas ciências, no espectáculo e na vida pública e, no entanto, tinha as suas virtudes, como qualquer outro predestinado. Já lhes disse que não posso garantir que todas as saudades que herdei do meu tio me permitem ver as memórias não como elas realmente aconteceram, mas da maneira que a minha imaginação as recria. De maneira que, quando me lembro do meu tio, faço-o como aquelas curtas-metragens dedicadas às pessoas importantes: uma sequência desconexa de imagens a voar nas asas de uma banda sonora qualquer. Na parte do meu tio, a música que me toca dentro da cabeça é a “Human Touch”, do Bruce Springsteen, mas sem a parte lamechas da miúda. O Bruce Springsteen foi um artista que o meu tio ouviu, mas, graças a um inglês tão mau quanto inexistente, nunca soube reconhecer.
Nessas imagens, somos nós, eu e o meu tio, a fingir que somos felizes. Eu porque o sou e não sei; ele porque não quer saber se é ou não. Há a mão do meu tio sobre a minha cabeleira escorrida, cortada à saladeira, como se afagasse relva molhada. O gesto desce, desliza suavemente pela cara e apanha-me o queixo. Esse gesto continua. O meu tio abraça o meu sorriso. Leva-o debaixo do braço, como um jornal. Pode ler a minha expressão enternecida mais tarde, antes de dormir, ainda que já se tenha esquecido de como se faz para juntar as sílabas de amor reverberando nos meus dentes. Mesmo que já tenha nascido adulto, o meu tio toca-me e é uma criança. As mãos do meu tio são brandas e duras e dissolvidas como rochas calcárias. Tenho a ideia de que cada vez que o meu tio as lava, elas ficam mais descarnadas. Por isso, prefiro lembrá-las cheias de calos e ligeiramente deformadas nas palmas, como pedras de amolar.
O meu tio está desempregado, de baixa médica ou de férias. Não me lembro. É verão. Está calor na rua. O fervor da estrada torna o andar do meu tio um movimento turvo e deformado no princípio das pernas, junto ao chão. Traz uma garrafa de Sumol e um saco de tomates maduros. Eu brinco num resto de sombra transpirada junto às casas. Estão lá o meu irmão e os meus amigos. Atiramos tempo fora. O meu tio chamava-nos: “a matula”. Ao entrar em casa, diz qualquer coisa que não se ouve. Acena com a garrafa fresca. Ninguém da matula lhe responde. Eu e o meu irmão também não, embora eu fique feliz de ver o meu tio e de ver a humildade do aceno adoçada por um litro de Sumol. Minutos depois, o meu tio enfia a cabeça para fora do postigo, olha para a esquerda, para direita e, depois, novamente para esquerda, como se fosse atravessar a estrada. Não sai de casa. Só a voz dele vem ter connosco à rua. Só eu pareço ouvi-la. Quando me vê, chama-me pelo nome e volta para dentro. Então, sim, vou ter com ele. Sei que à minha espera tenho um prato de tomate migado à garfada, temperado com azeite e vinagre, triângulos minúsculos de alho e uma leve brisa salina. Quando chego à cozinha, a mão áspera do meu tio faz chover flocos de neve de orégãos sobre o prato de papa encarnada. O meu tio dá-me um garfo e uma fatia de pão e comemos os dois a “tomatada” sem dizer nada um ao outro. Se calhar, dizemos. Não tenho a certeza. Às vezes, não nos lembrarmos das palavras trocadas é uma forma de inventar silêncios. Este, que é o chão entre mim e o meu tio, funciona como se houvesse em nós a consciência de que aquela felicidade poderia ruir como uma avalanche. Para isso, bastava um miligrama de ruído desnecessário à beleza do instante. A minha memória não é… Bom, vocês já sabem. Pode ser que o meu tio até esteja a perguntar qualquer coisa: se quero que entorne mais Sumol para dentro do copo, se gosto mais da “tomatada” com o alho picado ou às rodelas… Não o deixo falar. As palavras, aqui, já não têm importância. Este silêncio sobrepõe-se-lhes e é delicioso.
Penso no meu tio, e é junto a ele que estou, no tempo congelado da minha infância. A achar que o mundo começa no fim das pernas do meu tio, onde me agarro como a um mastro de um navio à deriva na errância vacilante de um mar tempestuoso. Sou mais pequeno que as pernas do meu tio. Água pelos joelhos. Abraço-me a cada uma delas, à vez, e, enquanto o meu tio caminha, vou balançando passo a passo no pêndulo desse tempo que não pára. Nas pernas do meu tio, dou oitenta voltas ao dia num mundo de fantasia. Não existe, porque só tem tamanho na minha cabeça.
A imagem que vejo a seguir é o meu tio com o cabelo penteado para o lado e a cara remendada por pedacinhos de papel higiénico com pequenas pintas de sangue. O meu tio corta-se muitas vezes a fazer a barba. Talvez seja dos nervos. Ou da epilepsia. Eu acho que é só falta de jeito. Mais nada. Porque o meu tio tem muita destreza para outras coisas. Por exemplo: o fio e a pulseira de prata que brilham como as poeiras cósmicas de um cometa à volta do pescoço e do braço direito são criteriosamente esfregados, uma vez por semana, com as pevides viscosas dos melões que comemos à sobremesa. O meu tio também conhece muitas mezinhas. Conseguiu erodir uma verruga nas costas da mão, quase do tamanho de um meteoro, a esfregar-lhe aloé vera todos os dias, várias vezes. Curou uma hepatite a beber chá de celidónia. Eu acho que foram os medicamentos que o salvaram. Ele não. Eu recomendo-lhe juízo, aconselho-o a não brincar com o fogo, que pode não ter morrido do mal, mas que ainda pode ser levado pela cura. Ele diz que eu não percebo nada. E eu prefiro vê-lo convencido de que sabe mais que os médicos. Parecendo que não, dá-lhe uma certa autoestima. O meu tio é assim. Faz da ilusão uma verdade. É uma daquelas pessoas a quem devemos responder “está, sim senhor!” quando observa que está um lindo dia e lá fora não há uma fenda de sol a despontar no metal do céu. Isso ajuda-o a descontrair e a escapar ileso aos efeitos secundários de pensamentos perturbadores. É pena só ter descoberto isto agora. Talvez tivesse evitado muita coisa.
Agora outro bloco de imagens: a parte da frente do carro velho do meu pai está virada no sentido contrário ao da única saída. Embora não tenha carta de condução, o meu tio sabe guiar. Não sei quem o ensinou. Não é importante, agora. É domingo. Dia de ir visitar a minha avó ao hospital. Eu e o meu irmão pedimos ao meu pai que nos deixe ir com o meu tio dar a volta ao carro no pequeno largo ao fundo do lado cego da rua. O meu irmão vai à frente. Eu, no banco de atrás, agarrado aos ombros do meu tio. O meu tio dá à chave. O gargalhar do motor funde-se na cumplicidade dos nossos. O meu tio só tem a blusa branca de alças que se interpõe entre a pele e as camisas e nos deixa ver os pelos do peito. O fio de prata brilha. Um palito anda à roda entre os dentes. A viagem é curta, quase sem tempo, quase sem lugar, mas há uma certa adrenalina inocente ao transgredir cinquenta metros de lei ao lado dos nossos heróis. É provável, mas talvez não, porque o meu irmão nunca exagera, que o meu irmão diga:
– Somos todos da máfia!
Depois há a imagem do momento em que descobri que o meu tio era um homem bom. Sensível. Ou talvez já andasse cismado na ideia de fazer o que fez depois, ao ponto de lhe revirar completamente o humor. Até o isolar completamente numa tristeza inacessível. Eu tinha aprendido um palavrão novo. Uma das virtudes habilidosas do meu tio era a de funcionar como filtro de tolerância aos palavrões que a matula me ensinava e iam ocupando o meu vocabulário de rua: um riso para os vernáculos mais inocentes, cara de bota da tropa para os mais sérios, “espera, que eu vou já dizer isto à tua mãe” para os mais insidiosos. Então, resolvi testá-lo. O meu tio já estava realmente apoquentado, antes de o chamar por aquele nome. Não consigo dizer se já me tinha apercebido ou se só me dei conta da perturbação depois de ter feito asneira. Mesmo assim, arrisquei. Estávamos no meu quarto. Exclamei, sem dentes:
– … !
O meu tio não reagiu de nenhuma das três formas possíveis. Foi uma reacção vinda do inesperado, como se ouvisse uma voz carregada de saudades a chamar por ele. Chorou. Eu nunca tinha visto o meu tio chorar. A tristeza tinha um rosto sério, enxuto. Um rosto masculino. O rosto do meu tio. Caramba, aquilo deixou-me seriamente abalado.
Desesperado para que não fosse contar nada daquilo à minha mãe, ajoelhei-me na cama e juntei as mãos, como se guardasse uma borboleta lá dentro, e disse:
– Chiça, tio, era só a brincar. Não é preciso tanto!
A verdade é que o meu irmão também estava lá. Ouviu o nome que chamei ao meu tio. Chamou-me burro. Há poucas probabilidades de me ter dito isso. Mas eu acredito em coisas impossíveis. Quando lembramos, o que aconteceu já é outra coisa. Reitero: embora sejam a mesma pessoa, o eu que rememora os factos já não é o mesmo eu que os viveu. Daí que talvez o meu irmão me tenha mesmo chamado burro. Explicou-me o significado do que eu disse. O que aquele palavrão queria dizer estava um degrau acima do inofensivo. Mesmo assim, é difícil para mim livrar-me do nojo da culpa pela decisão do meu tio, ainda que o meu tio só o tenha feito muitos anos mais tarde.
Vozes. A hipótese de que as vozes descarnadas incomodassem o meu tio durante muito tempo é a que dá mais sentido àquilo que fez. Não disse ainda o que foi que o meu tio fez. Foi uma coisa que apagou um resto de dor na vida do meu tio e deixou a minha mãe, o meu outro tio, eu e o meu irmão e os meus primos a chorar de dor para o resto das nossas vidas.
– Edu. Edu. Edu.
Às vezes, ouço a voz do meu tio, escondida na minha cabeça. Juro. É verdade. Chama-me para dentro de casa.
– Tio. Tio. Tio.
Ainda não. Estou na rua. Com a matula. Ainda não é hora de ir ter com o meu tio.

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