A minha mãe a passar-me a mão pelo restolho da barba e a dizer com uma saudade alegre:
– Tens a barba do teu avô.
E eu, tão longe de mim como da minha mãe, sem nunca ter conhecido o meu avô, a conhecer a sua vida inteira na lixa áspera do meu rosto. O meu avô tinha um olho de vidro. Eu a ver-me ao espelho era o meu avô a ver-me a partir do seu olho de vidro. Hoje, conheci o meu avô. Acariciei-lhe o queixo e pude sentir-me me tão velho como ele. O meu avô existe, o meu avô vive e é outra pessoa. Hoje, o meu avô sou eu.
Archive for Fevereiro, 2013
O meu avô
24/02/2013Coliseu
20/02/2013Vi-me no jugo de dias imperadores.
Numa batalha de gladiadores,
Era o guerreiro a combater-se na arena.
Lutando contra os próprios dissabores,
Cumpria em mão pesada a sua pena.
Cresciam vozes nas bancadas,
Pediam um golpe fatal àquele réu.
E logo depois, já caladas,
Viam que as setas atiradas
Contra o prumo do céu,
Caíam apontadas
Ao centro do coliseu.
Crivadas
Num alvo que era eu.
Avaria
19/02/2013Estou como um motor gripado: por prudência, não posso deixar de trabalhar, mas também não consigo gerar força motriz a partir das combustões emotivas que me pulsam dentro do peito. Até o freio da boa consciência emperrou. Perco-me numa zorreira de fumo impulsivo, a desandar para lado nenhum.
Folha caduca
17/02/2013Quanto mais franco, quanto mais livre, quanto mais autêntico, quanto mais verdadeiro, mais só. A sinceridade é uma porta dolorosa aberta à solidão.
FOLHA CADUCA
Dá gosto ver, porque impressiona,
O que fica da Natureza desfolhada.
Mesmo sem flores nem folhas na ramada,
Qualquer árvore invernosa emociona
Pela serenidade em que se vê frutificada.
Enraizada na terra doce da eternidade
Despe-a e veste-a o instinto de preservação.
Vive abrolhada em singularidade:
Dá frutos tão brutos, que apodrecem no chão.
Catastrofismo intergaláctico
16/02/2013É um fenómeno perturbador. Desde que leixões celestes começaram a cruzar os céus diariamente, parece ter sido desmantelado o ímpeto cataclísmico de sismos e vulcões. Medidos por um estalão cósmico, não passam de pruridos telúricos, e é pena. Embora compreenda o destempero, até eu, que ando sempre de olhos postos no chão, com uma vergonha infinita de mim e dos outros, desviei a órbita e passei grande parte do dia a olhar esperançosamente para o firmamento, na expectativa de que uma pedrada incandescente me pudesse atingir, cumprindo a sua epifania. E nem assim…
Eis o Homem
15/02/2013Resignação do Papa. Deve ser, ao mesmo tempo, difícil e aterrador assumir as funções de Sumo Pontífice nos dias actuais. Por mim, não queria estar enfiado nos paramentos do ofício. Sem Tordesilhas que possam dividir o Sistema Solar em metades, nem palavras místicas a multiplicar as migalhas atiradas ao espírito, que pode apostolar um sujeito de boa vontade quando o Homem vai à Lua, envia robôs a Marte, abre e fecha negócios em ilhas desertas, dispara vacinas contra vírus diabólicos, e teima em não se descobrir a si mesmo?
Rosnar de Tessalónica
14/02/2013Estava rabujado, fraco de pachorra, e com as duas páginas mal-humoradas de Os cães de Tessalónica, do Askildsen, tomadas ao pequeno-almoço, bem frescas no génio. Só consegui arremeter de raspão à disponibilidade desgarrada na provocação:
– Não se lastime tanto, rapaz! Exorbite as suas qualidades. Olhe que as tem! Sempre há-de achar algumas no espelho das palavras que lê nos seus livros.
– E para quê? Dançar ufanamente ao rufar das ovações da consciência é meio caminho andado para ferir-lhes a legitimidade de morte.
– Então reproduza aquelas louvaminhas que lhe vão deixando de onde em onde! – E foi a faísca no rastilho.
– Já olhou bem para a Lua?! Acende-se todas as noites sem necessidade de acessórios fluorescentes a comprovar-lhe o brilho no escuro. No entanto, cumpre diligentemente o seu papel…
Pobres de nós! Não conseguimos conduzir discretamente o carro da humildade sem arroubos de luzes a encandear quem nos cruza.
Poema
13/02/2013Não é meu, nem teu, nem de ninguém,
É um quebranto que vem
Quando menos se pensa.
Nasce quando nasce,
Cresce do nada, faz-se
Sem pedir licença.
Às vezes, tristeza em festa,
Poema é a arte do sensível
Que nos resta.
A última coisa tangível
Que se presta
A alcançar o impossível.
Um prado sofrido
13/02/2013Casava bem com um rebanho de ovelhas redondas como nuvens a pastar num céu verde que hoje vi junto à estrada. Elas a ruminar tufos de gramíneas e eu os cardos retardados do meu sofrimento.