Archive for Maio, 2012

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Encontro

30/05/2012

Apareceu-me de rompante, insofrida, cheia de reverências, salamaleques e o credo na boca. O trabalho roubou-lhe anos de juventude, mas continua emoldurada na cara açucarada e bolacheira que anos de convivência circunstante me gravaram na memória. E recebi-a com a intimidade escancarada de quem foi gerado e criado no açude barrento do mesmo líquido amniótico.

– O senhor conhece-me?

– Está claro que te conheço. Andámos juntos na escola.

E lá fiz um esforço para que se visse a pisar a sombra rasa do meu corpo na mesma charneca em que eu calcava a dela quando voltou a insistir nas mesuras:

– Ao cabo ao cabo, somos folhas do mesmo mato difícil, escasso e rasteiro, mulher! Deixa-te lá dessas cortesias. Já não se usam…

– Sim, mas você estudou e isso dá-lhe outro estatuto, superior ao meu. Eu fiquei prendada para os pesos da vassoura e da esfregona.

– Não devias espreitar o mundo pela largueza afunilada de nenhum canudo. Se soubesses como me pesa a caneta de cada vez que tenho que anotar as arrobas encarniçadas das minhas misérias, não querias saber disso para nada.

Despediu-se quase em silêncio, como quem olha a um mal-agradecido, e desceu novamente ao vale de lágrimas da vida.

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Dia do geógrafo

29/05/2012

Ninguém sabe para o que nasce, bem diz o povo. Mas ainda que uma parte de mim se negue a admiti-lo, no meio do redil de falências e desilusões atormentadas em que, voluntariamente, me vou aniquilando, foi bonita e certeira a escolha de seguir o ofício de Eratóstenes e Estrabão. É a fazer o levantamento das coordenadas humanas que palpitam noutros corações que eu tento calibrar as minhas. Quero deixar cartografadas todas as horas no atlas provisório da vida.

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Mar luso

26/05/2012

Rio caudaloso

De todos os rios.

Lastro saudoso,

Cioso

De sonhos e façanhas

Feitos de lágrimas, suores e calafrios

Arrancados às entranhas

Das montanhas.

Corre, trilhado,

Em ímpetos planos.

Ondas mortas contam os anos

Que te afastam do passado

Português.

Esperam que sejas, mais uma vez,

Calmaria de uma imensidão deslumbrada,

Torrente aflita

Que se agita

Em cachões de água salgada.

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Regresso

25/05/2012

Terminou há pouco o sortilégio de uns dias longe do vespeiro humano. E depressa ressurgirá à tona a inconstância crispada do pior de mim. Atrás da ânsia intransigente de solidão, a necessidade condescendente de socialização. Conciliá-las é a minha grande pecha. E, entretanto, o tempo vai fugindo na sua impaciência. Bem tenho tentado detê-lo recorrendo às armas dos poetas: ou a escrevê-lo, no retiro dos anacoretas, ou a espremer-lhe a íntima significação de todos os instantes, no meio convivente das assembleias.

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Cabo Sardão

23/05/2012

Cá vim carrear-me nestas alanceadas arribas alentejanas, onde a desolação erma da paisagem remendada por retalhos policromados de regadio acaba num parapeito vertiginoso de xisto debruçado ao horizonte caleidoscópico do mar. Morde-me não sei que vontade de, numa cabriola, atirar-me às suas entranhas líquidas e, enleado nos grilhões de sal das correntes, deixar-me ir como uma  mensagem de SOS guardada dentro de uma  garrafa de vidro. Na vã esperança de que alguém, numa outra bruma recôndita do mundo, me possa recolher e decifrar neste enigma de náufrago da vida imerso em dúvidas herméticas. Um náufrago enfastiado de se conhecer e ávido de se descobrir.

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Liberdade

21/05/2012

Estou perdido. Mas lá vou reagindo como posso às desgarradas solicitações de Liberdade que, incessantemente, me vão roendo na consciência. Sozinho, a sós com a solidão, a ser inteiramente livre; junto dos outros, a fazer de conta.

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Sina

20/05/2012

Vida, foi a eterna juventude
Que abnegadamente te pedi.
Porfiei o mais que pude,
Mas foi em ti que envelheci.
Vida, dou corda ao tempo a desejar-te,
A ser-te princípio e não fim.
A ver-te renascer em toda a parte
E a estiolar dentro de mim.

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Algumas palavras

20/05/2012

Conhece-me. Sabe, com uma exactidão diáfana, todos os marcos desassossegados que estremam as confrontações medulares da minha existência. Hoje, quando em poucas palavras me lançou a um auditório de patrícios e alguns adventícios, senti-me a atravessar desveladamente a expressão inefável dos meus mistérios até me sentir inédito, espectral, uma transparência da imagem que sou aos seus olhos. Talvez tivesse carregado em demasia no brilho das tintas. Foram palavras brandas e ternas, mas que traziam na doçura o arcaboiço das almas maiores. Devo-lhe muito. Devo-lho tudo. E não sei se algum dia chegará a perceber a magnitude dos sismos comovidos de gratidão, amizade e respeito que lhe guardo e todos os dias me abanam. Talvez não. A linguagem, desgraçadamente, não chega a tanto. Não passa de uma sombra viçosa dos mil sóis emotivos que nos raiam dentro do peito. Não devia ser assim. É que eu tenho sido sempre avaro, banal,  canhestro nas palavras e nos gestos cruciais dedicados àqueles que mais amo e a quem mais firo com as minhas mortificações. E, no entanto, devo-lhes tanto. Devo-lhes tudo. 

A  OUTRA MÃE

Foi uma sorte de lotaria.
Quanta alma não daria 
O que pudesse,
Tudo o que tem e não tem
Para que tivesse
A fortuna de um dia 
Encontrar alguém de bem
Por quem se tece
Uma malha polida de amor e brilho
Igual à que une um filho
A uma mãe?

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Fuga

18/05/2012

Foge a gota de água da represa.

E há uma solidão pingada

Na leveza dela.

Uma frescura lavada

Na beleza

De ser bela.

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Dia da Vila

17/05/2012

É dia da vila e não podia proceder em melhor conformidade com a significação ígnea desta data. Junto a um antigo moinho de rodízio, num esplendor resguardado onde a água já só serve de força motriz às mós do tempo e à memória colectiva da serra, assisto, engrossando o caudal de bem-aventurados, a mais um corpo a corpo entre dois frémitos gregários que, desde as mais baldadas horas da minha meninice, se digladiam no desterrado coliseu da consciência. Ao sermão do pároco, arejado, gratuito, fiel aos paramentos votivos da Sagrada Liturgia, responde um ribeiro no seu salmo habitual, livre, alodial, aos saltos acrobáticos entre os novelos maciços de sienito, dando graças multicores à paisagem estendida vale abaixo, sob a abobada celestial de sombra fresca e verde a jorrar dos amieiros. O que podem a Religião e a Natureza contra a corrosão imperativa dos calendários! Cada uma delas, incansavelmente, vai pregando a sua santidade. Uma, à força repetida da rogação, a lembrar-nos de que somos pecadores; a outra, à força bruta e vívida da renovação, a fazer de nós sonhadores. E é reincidindo em ambas que quase me dou por convertido à ideia mística da Eternidade.