Archive for Abril, 2013

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Descampados sociais

28/04/2013

Cá continuo a contar palmos aos meus descampados sociais. Mas quais deles serão maiores? Os que me são impostos, impenetráveis às minhas razões, ou aqueles que escolho por mero instinto de liberdade crítica, onde o eco dessas razões facilmente se dissipa?

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Fatos por medida

28/04/2013

É uma síntese irónica, desfigurada, mas real. A vida parece-se cada vez mais os fatos que levo aos casamentos de familiares e amigos. Ou por largura excessiva nas mangas, ou por defeito no perímetro da cintura, nada me parece talhado à deformação das minhas medidas. O único fato que me assenta bem no espelho da consciência é o da genuinidade. Mas quando faço de figura de proa ao vesti-lo, não posso deixar de corar de vergonha e remorsos sempre que, diante daqueles a quem o íntimo protocolo da simplicidade obriga a apresentar-me dessa maneira, me esticam o dedo e, num coro timbrado de pudor, dizem que estou nu.

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Microconto II: O encantador de serpentes

25/04/2013

MICROCONTO II – O encantador de serpentes.

– Desta vez é a sério – dizes. – Mesmo! – Os teus amigos fazem troça, desaparafusam os indicadores da extremidade das testas. A festa parece propícia à diversão geral, menos à tua.
És o D. Juan do grupo, o pêssego, cento e oitenta e cinco centímetros de musculatura de arame. Uma fibra de puro sangue lusitano. Andas realmente marado. Tentas disfarçar a travessia do sahara amoroso tossindo um cigarro mal fumado. O teu melhor amigo ri-se de ti, chama-te encantador de serpentes e desfecha-te uma bofetada moral com o bife cru de todos os descaramentos:
– Devias considerar meter-te na política.
Não acredita em ti. Bem, na verdade, depois de traíres, ignorares e desapontares reiteradamente um balúrdio de miúdas adoráveis que te veneraram como a um santo, ao ponto de as bem-aventuranças dos mártires parecerem heresia, já ninguém acredita. Ninguém.
Pedes-lhe que olhe, não agora, que dá uma bandeira do caraças, dali a pouco, para a miúda no canto da sala que te despeja uns olhares avassaladores dentro dos quais julgas ver cartas de amor por abrir.
Avanças para ela, decidido. Abres a boca, mas sentes-te a respirar na lua. Mal consegues falar.
– Não… – interrompe-te. Sorri maliciosamente como se te tivesse acabado de mudar a fralda. O resto é sancionado pelo silêncio uníssono na voz de ambos:
– És um cretino!

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Perdido e não achado

22/04/2013

Deixei voar do bolso de trás das calças um poema, escrito nas costas de um talão de compras, com o qual andava a combater há vários dias. Agora, nada tenho de significativo a apresentar à brancura negra deste diário. O meu encontro com o dia está irremediavelmente perdido. Perdido por falta de comparência.

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Assincronia

22/04/2013

Ando de tal maneira dessincronizado com o mundo, que em vez de medir o tempo em horas, meço-o em angústia.

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De Lisboa até à Lua

18/04/2013

A reter panoramas retentivos no Miradouro da Graça, a desfiar as barbas da História na paz branda do Tejo, em Belém, a deixar o relógio desandar em horas devolutas à sombra luminosa do jardim da Gulbenkian, ou, simplesmente, a receber calhamaços de instrução no auditório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, uma visita a Lisboa, para mim, é sempre uma correcção magnética à inexorável declinação dos rumos provincianos que vou desenhando na pátria. Vou e volto, e quando me perguntam de onde venho, apenas me apetece responder:
– Da Lua.

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Primavera muda

16/04/2013

A primavera veio cansada,
Chegou sem olhos de falcão.
Monótona e desconsolada,
Voa colada ao rés-do-chão.
Tanto gritei que viesse,
Tanto ansiei que me desse
Asas de seiva e de veludo,
Que agora, alheada de tudo,
Me parece
Que a chamou a voz dum mudo.

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Sinais trocados

15/04/2013

É interessante, a matemática do processo. Em dias anquilosados como o de hoje, a presunção de que a paisagem pode muito bem ser um estado de alma está de tal modo explicitada cá dentro, que me basta encarar a infindável harmonia universal desta que agora me envolve para estragar tudo. Hostil e afastativo, desterrado cá nos meus desterros de angústia, em vez de me engrandecer integrado nela e com ela, diminuo-a, profano-a, amesquinho-a. Mais com menos dá menos, diz a regra dos sinais.

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Sísifo

14/04/2013

Tal como eu, este meu amigo é um Sísifo condenado a driblar o destino embalando uma pedra de interrogações pelas serranias da vida fora. Filhos de um tempo sem idade, uniu-nos não sei que laço fraterno de rebeldia precoce. Garotos ainda, logo no primeiro dia de aulas, insubmissos às regras mais elementares da vida colectiva, fugimos da escola. Sem outro plano de fuga que não o instinto infantil, não passámos de cem metros além muros. A consequência da evasão foi,  a descoberta do fogo nas orelhas. Desse dia permanece a forma incorruptível desta amizade duradoura, apertada pelas mãos cegas da inocência, cujo nó cego, apesar de nem sempre ser lembrado com a frequência exigida, nenhum esquecimento conseguirá desatar.
Dizia-me, há dias, este amigo, a propósito disto de ter a boca arrebentada pela febre de tantas perguntas sem resposta, enquanto víamos a pedra que arrastamos a desembestar aos trambolhões pela ladeira da ilusão abaixo:
– O nosso remédio é ler e escrever umas coisas.
Concordei imediatamente. Os livros que trago guardados na lembrança são boas testemunhas. Mas como até nas certezas mais duradouras tenho este maldito defeito de fabrico, reajo, uma vez mais, ao retardador. Escrever é a mais fiel falsificação da realidade. Por muito que a compaginação das palavras na torrente de um desabafo rebente os diques do sofrimento, nunca se diz tudo. Em cada mensagem enviada, uma parte da revelação é o concreto obscuro, a outra, adivinhação. Ou por pudor, ou por falta de amplificação de decibéis na consciência, ou, simplesmente, porque aqueles a quem falamos não têm ouvidos sensíveis às nossas súplicas, fica sempre um lodo de traição incompreendida a sedimentar-se nas batimetria de cada narrativa.

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Contradição

09/04/2013

Não tenho redenção!
Vivo numa confusão
De perguntas urgentes
Sempre presentes
No meu coração.
Entre o perto e as lonjuras,
As certezas, se existentes,
São novas perguntas futuras,
Dúvidas persistentes,
Quanto mais permanentes,
Mais inseguras.
Sem outro pão que me valha,
A fome de amor que sinto agora
É esta fartura, esta migalha
Que em faltando me devora.