Posts Tagged ‘Crianças’

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Histórias do Largo dos Chorões

01/06/2009

Dizem-me que o Largo dos Chorões já não é o que foi. Acabaram-se as histórias sobre malteses encostados às paredes salitrosas do velho lagar, vegetando.  Já não se reúnem «aquelas» multidões de homens e mulheres aos Domingos, socializando o descanso do amanho da terra. Extinguiram-se as crianças às topadas nos cubos da calçada, à pedrada com cães e gatos, fugindo à catequese e aos rebanhos de cabras.

Quando passam os Marosquinhas, galhofando com estrondo, sob a desenxabida pose imperial da mãe, dá-se o remoçar do Largo que em tempos foi o centro do mundo. Aconteceu comigo: estava na esplanada, cervejando com amigos, quando aquela charanga infantil, me desviou por completo a atenção.

Os Marosquinhas pululavam na passadeira. O caçula, impertinente, franzia a venta e sacudia compulsivamente as mãos da mãe que o algemavam. Passou por mim com os olhos rasos de água e gemia choramingando: «- mãe, chichi…». A mãe apertava-lhe a mãozinha com força e uivava: «- cala-te amaldiçoado! Ainda te prego uma tuna mesmo aqui no meio da vila para veres como é que canta a cuca!». Atemorizado, o pequeno reagia a cada apertão com pulinhos maiores e um choro cada vez mais impertinente. O mais velho, segurando nas mãos uma zarabatana de cones de papel feita de tubo, olhava de soslaio e fingia metralhar todos quantos presenciavam a aflição do irmão, na esplanada do café.

A água mole do choro do marosquinha foi tão persistente que a dura pedra  do coração da mãe assentiu, na urgência do momento, em pôr o menino a urinar. Ignorando a casa de banho pública do Largo, baixou as calças ao pequeno e a ajudou-o a libertar-se da tormenta que o apoquentava ali mesmo, em cima do poial que antecipa as latas de que é feito o portão de entrada da quinta do senhor Zé.

Acocorada, com a cabeça descida às ilhargas do caçulinha, a mãe Marosca mamava o seu cigarro. E foi quando o pirralho abriu finalmente as comportas da bexiga, que as baforadas de fumo a sairem da cabeçorra da progenitora, não deixando ver as partes do gaiato, deram a ilusória sensação de que a micção do pequeno se fazia no estado vaporoso, em razão da sôfrega e prolongada espera. Durante esse tempo o mais velho, de costas voltadas para os familiares, como que anunciava aquele milagre despedaçando o bocado de tubo PVC  no sinal de trânsito.

Quase todas as manhãs, sentado no pequeno poial onde se aliviou o marosquinha caçula, lá está o senhor Zé, com um amplo sorriso a cortar-lhe as faces encarnadas, vendendo os frescos legumes  geometricamente dispostos a seu lado, adulando, com requebro, a qualidade do trabalho desta terra.

Largo dos Chorões2

Fotografia: Largo dos Chorões. Década de 50.

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O caso Alexandra e os Marosquinhas

27/05/2009

As miseráveis imagens da menina russa a levar uns tabefes da mãe, acompanhados por um histérico escarcéu, fazem-me lembrar as que confabulei há umas semanas atrás, aludindo aos manos Marosquinhas. Relatei-as aqui, no Terra Ruim, no post chamado Golpe de Asa.

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Golpe de asa

13/05/2009

Derrapando na lisga verde da calçada do Revez Quente, os manos “Marosquinhas”, de cabelos incandescentes, olhos muito azuis alumiando as caras alvas e caveirentas, tomavam a direcção da escola sob os rugidos imperiais da mãe “Marosca” que os vigiava no encalço,  soberba.

Arqueado por um peso de calhaus carregado na mochila, o “marosca” mais velho, igual ao mais novo só que mais alto, disse ao outro, gingando:  «Oh Rui olha para mim que hoje sou um avião!», abriu os bracinhos à altura dos ombros e, esticando-os, com os lábios mal cerrados, soprando faíscas de perdigotos, rebentou a correr aos ziguezagues pela rua fora. O mais novo ria, enlevado nas acrobacias do irmão.

A bardajona da mãe, de chapéu-de-chuva na mão, enublada pelo fumo do cigarro que entalava nos dentes e chupava com ganância, reagiu à passagem do petiz com uma bordoada em cheio no cotovelinho do “marosquinha” primogénito e o avião nem sequer chegou a descolar, com problemas na asa esquerda.

Suspenso no passeio, agora com a  cara inchada e carmim, o “marosquinha”,  deteve-me com as vistas azuis inundadas em água e a mão direita cravada no cotovelo molestado. Fazia força para não chorar.  Teve vergonha e não chorou. O caçula, com as mãozinhas esqueléticas enterradas nas algibeiras, já não ria, melindrado.

Pouco depois, a mãe, meio metro atrás das crianças, com um arfar irritante, assobiando bronquite, grunhiu-me os bons dias. Irado com tamanha sordidez, retorqui-lhe com um olhar insultuoso e mudo. Disse para mim: «marosca bardajona, havia de cumprimentar-te como acabaste de mimar o pequeno».

É o diabo,  os “marosquinhas” acossados à séria por aquela criatura vil, quase todos os dias, só por fingirem voar ou ser crianças como as outras.