Archive for Dezembro, 2013

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“Os Transparentes”

11/12/2013

A transparência pode ser um estado de alma. Através da leitura podemos estar em todos os lugares, responder à chamada de todos os enredos, ser tudo de todas as maneiras. Podemos ler, ver e sentir sem ser vistos nem sentidos, mas com a sensação de que o autor das palavras e os personagens que criou também nos estão a ler sem saberem que existimos. “Os Transparentes”, de Ondjaki, é um livro que nos arde com uma dor boa e diáfana nas mãos. Um livro que se acende num “vermelho-devagarinho” e nos transporta até à miscigenação de sensações provocada por Luanda.

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11/12/2013

Sem ninguém me ver
Do outro lado da natureza,
Sou o moleiro a moer
O rodízio da tristeza.
E o moinho da vida mói e mói…
Vai moendo até dar a impressão
De que é o mundo que me dói
E que a angústia nunca se destrói,
Esfarelada nas voltas do coração.
Roda, roda, e fica sempre em grão.

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Silêncio

11/12/2013

Fiquei sem versos no coração.
Escrevi-os todos, a desejar-te.
E digo a mim mesmo que não
Que era só uma alucinação
Quando via o teu todo em cada parte.
Mas como pedra que resistisse
A um tempo que não é seu,
Houve sempre um verso que me disse
Que no teu corpo de Eurídice
Estava a lira de Orfeu.
E então esperei que se ouvisse
Um poema de manifesto
Amor entre nós.
Cantei, gritei, mas o meu gesto
Não tinha ouvidos na voz.

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Nélson Mandela

11/12/2013

Morte de Nélson Mandela. Acreditou, lutou, fez da liberdade a sua única prisão e inventou um país quase do nada, ensinando a esta triste Humanidade que também a imaginação pode ter a sua dignidade no reino da política. Receber uma notícia assim, com um mundo a ferro e fogo, é como ouvir dizer que está para acabar o Homem e a própria esperança.

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Gramática

11/12/2013

Colocar a vida dentro duma frase…
Mas duma frase enfática
Cheia de força e que arrase
A frigidez da gramática.
Que o verbo seja transitivo
E mantenha o aspecto
De um sentimento infinitivo
No complemento directo.
Que amar seja um estado
De transe em plena ânsia,
E nós dois a concordância
Entre o sujeito e o predicado.

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Inverso

11/12/2013

Tudo me vem depressa,
Tudo me passa devagar.
Só o amor, quando começa,
Corre sem nunca acabar.
Já cheguei a perguntar
Porque é que luto,
Se lutar é um modo de o perder.
Todo o amor me brota em bruto,
Tão puro, que ninguém quer beber.
Talvez seja por não ter rumo
Este jorro interior que é só doçura
E parece impróprio para consumo
Vertido em versos de amargura.

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Declaração

10/12/2013

Disse-lhe tudo aquilo que tinha guardado dentro de mim há anos. Mas saiu-me uma prosa tão perra, tão rançosa e tão coberta de banalidade, que nem fui capaz de ser autêntico, nem persuasivo e, é bom de ver, muito menos comovente. Os lugares-comuns, e, ainda por cima, fora do tempo certo, são como aquelas bolachas gulosas que guardamos para uma altura especial, mas que não resistem muito para além da data de validade. Quando as vamos servir, continuam doces, mas moles, e toda a gente as põe de lado à primeira dentada.

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Diário

10/12/2013

Perguntam-me muitas vezes o que ganho eu ao manter um diário. Que é feminino, que é coisa de criança, que é coisa de velho, que é a exposição escancarada do meu íntimo, que é o avesso escuro do que sou à luz dos dias. Vão-me adivinhando de todas as maneiras sem me conhecerem. E eu fico-me na minha perplexidade consentida. Ora nem tudo o que um homem é, para dentro e para fora de si, se revela, nem mesmo antes da extrema unção. Partimos sem saber tudo de nós e quase nada dos outros, embora sejam os outros quem melhor pode dizer até onde chegam as malformações e as virtudes congénitas da nossa existência. Estamos desamparados, à mercê de nós mesmos e do intemperismo das circunstâncias, pelo que este diário não é, nem quer ser, o reflexo expressivo dos meus dias transformado em tanques de roupa puída, orações e gramática. É a marginália de um mapa emotivo de sombras silenciosas e memórias desalinhadas acerca do modo como a vida se desenrola. Um método de humanidade científica que me permita compreender-me, para que os outros possam entender alguma coisa de mim, e vice-versa.

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“Estrada para Los Angeles” , de John Fante

10/12/2013

Há muitos livros na minha vida, mas poucos me trouxeram a ideia de estar a ler o extenso rol de confissões com que se poderia redigir a minha biografia. Tirando as obras de um escritor cuja presença me é tão incandescente e tão sagrada que me basta evocar o seu nome para sentir fogueiras de heresia a arder na língua, “Estrada para Los Angeles”, de John Fante, é um desses extraordinários exemplares. Li-o com o rigor de um quiromante, como se seguisse o meu destino revelado nos pequenos vales das palmas das mãos. E um livro é sempre uma estrada sem fim que nos conduz para dentro de nós e dos outros.

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Diário

10/12/2013

Perguntam-me muitas vezes o que ganho eu ao manter um diário. Que é feminino, que é coisa de criança, que é coisa de velho, que é a exposição escancarada do meu íntimo, que é o avesso escuro do que sou à luz dos dias. Vão-me adivinhando de todas as maneiras sem me conhecerem. E eu fico-me na minha perplexidade consentida. Ora nem tudo o que um homem é, para dentro e para fora de si, se revela, nem mesmo antes da extrema unção. Partimos sem saber tudo de nós e quase nada dos outros, embora sejam os outros quem melhor pode dizer até onde chegam as malformações e as virtudes congénitas da nossa existência. Estamos desamparados, à mercê de nós mesmos e do intemperismo das circunstâncias, pelo que este diário não é, nem quer ser, o reflexo expressivo dos meus dias transformado em tanques de roupa puída, orações e gramática. É a marginália de um mapa emotivo de sombras silenciosas e memórias desalinhadas acerca do modo como a vida se desenrola. Um método de humanidade científica que me permita compreender-me, para que os outros possam entender alguma coisa de mim, e vice-versa.