Ao cabo de nove horas enfiado numa nuvem com asas que reduziu o Atlântico a uma poça de água salobra, aqui estou a registar as primeiras impressões sobre Cuba. O ar escalda. É húmido e empastado como a língua de um cão. Já vem asfixiado antes de correr na traqueia. A pele é uma toalha molhada torcida no torno apertado do calor. De resto, a cidade sincroniza-se na cadência de um relógio alvoroçado a viajar às arrecuas nos carros americanos. Tudo sobre uma paleta pictórica de propaganda revolucionária em cada parede. Há brancos, pretos e estrangeiros a conviver fraternalmente, serpentes de fumo de charuto erguidas ao céu, música nas ruas. Uma ideia heterónima de dignidade e fraternidade permanece preservada: esta pode muito bem ser a casa de Hemingway ou de qualquer outro cidadão do mundo.
Lentamente, a lente da curiosidade permite-me aproximar os fractais da realidade ao pormenor mais microscópico. Caminho pela Praça da Revolução a conhecer os heróis petrificados de outros tempos, vou ao Capitólio e também fico com vontade de me deitar ao lado daquele grande corpo branco e trabalhado, preguiçosamente estendido ao sol. Até que chego à Columnata Egipciana, em Havana Vieja, onde rendo a devida homenagem de português a Eça de Queirós. Na parede dos fundos, forrada a azulejo, uma imagem do escritor, pintada por Almada Negreiros, com a célebre frase retirada d’ A Relíquia: “Sobre a nudez forte da realidade, o manto diáfano da fantasia”. E detive-me um tempo demorado meditando sobre esta frase. Na pele de turista de ocasião e de revolucionário inveterado, de que parte de Cuba estarão os meus olhos a encher-se? Da realidade fantasiada, ou da fantasia mascarada? Quem serei eu aqui? Um Teodorico Raposão à procura de relíquias mundanas ou um Che Guevara guerrilhando com versos?