Archive for Agosto, 2012

h1

Cascata do Barbelote

29/08/2012

Tanto tenho bendito os inquebráveis encantos desta cascata renovados a cada gota de água ordenhada às penedias circundantes, que hoje, ao conhecer por dentro as entranhas arruinadas da velha aldeia sobrestante, paradas num silêncio virginal imposto por uma seca agressiva que cala a fúria até ao mais irreverente dos regatos, é que eu pude concluir que todas as palavras sobre ela ditas ou escritas fazem de mim um insanável pecador a jurar o santo nome da Natureza em vão.

h1

Artechique

29/08/2012

Mãos engenhosas que, desde que o mundo é mundo, entretecem medas de vimeiro como tranças de cabelo, talham colheres de pau remexendo o caldo do tempo, tendem no linho os fios da vida, apontoam na renda o toque delicado e maternal da serra,sentam, em cadeiras de tesoura ou tabúa, bisnetos e antepassados à mesma mesa fraternal, pintam de um sol doce e pegajoso a lida aturada nos favos dos cortiços e transformam o pó insípido do chão num bolo que tem o doce crestado da terra.

É em Monchique durante o próximo fim-de-semana.

h1

Confraria da solidão

28/08/2012

A confraria da solidão. É preciso não ceder à tentação vertiginosa do abismo. Destrancar o cárcere do rancor, soltar balidos de lucidez no redil humano, dar outra claridade às cegueiras iluminadas da consciência e não encarreirar no trilho fácil da lógica dogmática ou das abjurações gratuitas. Transigir. Cumprir-me na condição comum de homem livre e dar graças por ser uma criatura clandestina diluída em sete mil milhões de criaturas.

h1

A poesia

26/08/2012

Chego ao final de cada poema com a pavorosa sensação de ser o último. De que não existe mais húmus imaginativo onde a voz da inspiração possa firmar as raízes. E fico-me na confrangedora desolação de homem que não sabe renunciar aos arroubos da mulher que o intruja.  Olho, por entre as frestas do desencantamento, a paisagem circunstante e vejo que há sombras e há luz, há pedras e há mares, há desertos e há rios, há chavascais e há flores. A poesia, como todas as naturezas espontâneas, virá, então, a seu tempo: à hora mais livre, mais pura e menos pensada.

h1

Um dia destes…

23/08/2012

É um dos poucos amigos que me lê. Sabe em que loucuras irrealizáveis ponho os meus desejos e manuseia com um virtuosismo pragmático as mesmas armas nos campos de batalha de onde, frequentemente, tenho saído derrotado. Há dias, quando lhe disse que devia deixar de escrever estas anotações diárias durante uns tempos, só para descansar, tirou do louceiro da compreensão um serviço de cumplicidade transigente e colocou em pratos limpos um migalho de paz e resignação:

– Oh homem, só no dia em que deixares de sofrer…

h1

Olho de besta

18/08/2012

Não sei que género de metamorfose kafkiana me ocorreu esta noite, durante o sono, que quando o despertador alarmou o quarto e vi, depois, o troco do meu rosto na moldura do espelho, parecia ter – e tenho ainda –  um olho de besta no lado direito. Foi como se o perfil intumescido e repisado das minhas agruras tivesse aproveitado esse momento improvidente em que até as dores mais cruciantes adormecem para, impudica e secretamente, se projectar à vista desarmada.  

h1

Frustração

17/08/2012

Nunca somos as medidas que quisemos,
Fomos somente as distâncias que pudemos.
Fomos as flores que ficaram por florir,
Os sonhos prometidos por cumprir
E os versos de amor a sorrir
Que não escrevemos.
Fomos o avesso da harmonia
Num gesto lesto de negação
À voz certeira da agressão
Que a uma só palavra nos dizia
Que a perfeição não existia.

h1

Esperança

17/08/2012

Estava, como eu próprio pareço estar sempre, num inferno de desolações. Pedi-lhe que rodasse as faces ao prisma de modo a perspectivar as coisas de outro ângulo; que não se concentrasse tanto nos sóis por acender, mas, sim, na quantidade de estrelas ateadas na quentura do seu lume; que os sentimentos são geometrias de lados infinitos; que, em horas difíceis como as que vivemos, certos defeitos bons são melhores que as piores virtudes; que o tronco de inquietações em que se encontrava tinha tantos anos quantos tem esta velha Humanidade; que ninguém se pode arrogar postilhão de uma cartilha por procuração da consciência, pois que o caminho da salvação fraterna do Homem se faz por aproximação à sua essência. E quando dei conta, estava a granjear uma esperança oculta que, escassas vezes, tenho tido a coragem de propor a mim mesmo senão em esparsos gemidos prolongados. Evidentemente que, indo ainda a meio da viagem, não tenho melhoras possíveis. Nisto de forjar o ferro da esperança com maço e bigorna de pau, não conto ver o fundo ao saco. Sei bem que não convenço ninguém com jaculatórias desta natureza e que nos trinta argumentos daquela conversa me traí numa traição de Judas. Ainda bem. Gosto de viver os meus dias movido pelas rodas dentadas da dúvida permanente.

h1

Dança da chuva

15/08/2012

Queria hoje ver

Escorrer

Nas vidraças da paisagem

Uma outra imagem:

Tufos de ervas grossas

Como medas de cabelo

Cobertas por poças

De água e pingos de sincelo.

Riscos de chuva saltando dos beirais

Caindo em suicídios verticais

Por entre o pasto.

Traços espectrais

Sem deixar rasto,

Feridas ou sinais

No campo vasto

E triste deste dia.

Bátegas pesadas

Batidas a rajadas

Em cargas de cavalaria.

h1

Deus

13/08/2012

Cada vez mais crispada, a minha relação com Deus. E nem tenho que queixar-me quando tudo isto é fruto de um reflexo individual de conservação egoísta. Ao murmúrio interior e avesso que, dentro de mim, O renega, acode o eco sem fundo de uma outra voz resfolgada, instintiva e permanente, inalterada à passagem dos poros esponjosos do esquecimento. A voz misericordiosa do meu desespero.