Archive for Abril, 2012

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25 de abril: um enigma por decifrar

25/04/2012

Estamos desgraçados. A Liberdade ardentemente desejada pelos nossos pais e avós na profundidade de largos anos de silêncio doloroso, paga, sabe Deus, a que quilates de sangue e de lágrimas, desbaratada na retórica eloquente e rancorosa daqueles em quem, superficialmente, sufragamos a nossa pequenez. A essência da dádiva dessa Liberdade, humana por vocação, transformada numa excrescência tirana por perversão. É escusado. Somos um povo amnésico de alheados. As Revoluções, neste país, não passam de farsas outorgadas no palco incivilizado do ressentimento.

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Horas aristocratas

22/04/2012

Os extremos tocaram-se, durante a manhã de hoje, enquanto pedalava como que para vencer a corrida apressada do destino, sobre montículos de toupeiras gigantes de uma paisagem alentejana no sopé das minhas serras nativas. A Natureza numa paz primaveril, consoladora e alada. Uma harmonia sacramental, doce e escarolada, toda florida em promessas, em confrontação com a trajectória titubeante do meu velho problema de sofrimento humano, todo estilhaçado, todo amargo, todo rude, fechado à largura de certos horizontes. Duas intransigências contumazes, unas e inflexíveis, cúmplices nos mesmos silêncios, conciliadas no afã dos mesmos deslumbramentos. Mas, feitas as contas, no pólo negativo, estou em desvantagem. E ainda bem. Hei-de ficar a dever eternamente à travessia do húmus pátrio o sabor aristocrático das minhas melhores horas.

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O meu Portugal

21/04/2012

Pobre país. Têm sido de tal forma lancinantes as verdascadas que proficientemente lhe temos alanceado com o cilício obsessivo da mesquinhice e da abulia, que hoje, quem quiser entrar pela autenticidade castiça de Portugal adentro, tem de se chegar às grades de um mirante, à transparência de uma fotografia a preto e branco, ou às páginas desterradas à imaginação de um dos nossos génios literários.

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Sentença

17/04/2012

Sou testemunha, réu e juiz

Em causa própria e em todas as circunstâncias.

Surdo à matriz

Das boas ressonâncias

Com que a vida me condena,

Cumpro a pena

Na reclusão da minha essência:

Subversivo,

Vivo

Acorrentado à voz da consciência.

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Ver passar navios

14/04/2012

Tarde moinante e preguiçosa, aportado na plateia de uma esplanada, a encher os olhos na dança das embarcações, barra adentro, a marulhar nos altos e baixos do palco marítimo. Um bonito espectáculo. E foi então que me descobri no papel que me foi endossado na grande farsa da vida: o de ficar parado em cima do promontório rochoso do destino, erguendo loas à fatalidade, fantasiando mil coisas enquanto vejo os navios alheios a passar ao longe.

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Rio

12/04/2012

Aqui estou em estado fluvial

Ao natural

A correr parado.

Atado

Às amarras da corrente,

Eu e a minha solidão a sós,

A nascer na foz

E a desaguar nas fragas da nascente.

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Verrina

12/04/2012

Bem tento encarreirar na ordem programada de certas ocasiões. Mas qual quê!? É impossível fugir à minha natureza. Nó cego de uma teia intrincada de contradições, nas horas em que devia ser conciliante e complacente é que me desdobro num desconsolo de agoiros e imprecações. Uma sinceridade descomprometida que desgosta aos outros e a mim. Sou uma encruzilhada perplexa de enigmas. Quanto mais fiel aos instintos do autêntico, mais responsável me sinto por trilhar as feridas crónicas e sem prognósticos de cura da minha desventura existencial.

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Obstinação

11/04/2012

Agarro-me à caneta calejada

Como um humilde cavador

Que é rei e senhor

Da terra limpa e granjeada

A golpes fundos de enxadão.

É penosa a aflição:

Cavo

E desbravo

Da frente para trás,

De qualquer maneira,

Sem chegar à paz

De nenhuma clareira.

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Finalmente

10/04/2012

Tardou, mas chegou, finalmente, a composição insofrida de um poema que há dias me latejava na lira. Desencontrado da carga emotiva que o ligasse a uma imagem densa e imutável, toda a gaguez dos versos que vinham ter à bússola da caneta me parecia estrangeira, dessintonizada do território da inspiração. Valeu-me a solicitude pura de alguém a quem foi outorgado o dom supremo de Orfeu. Há humanidades assim. De boa-fé, munidas duma riqueza interior inabalável e paciente, têm coração para todas as desorientações sensitivas e intelectuais, trazem definidos no carácter os pontos cardeais da clareza expressiva, apontam o norte na graça afectiva dum gesto ou duma palavra.

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Páscoa

08/04/2012

O instinto de conservação pode muito. É dia de Páscoa, e eu, transviado da significação íntima desta Festa, sem outra lanterna de fé senão a devoção fanática pelas maravilhas da Natureza, vim até este Gólgota sienítico apreciar a vida saída do sepulcro invernal, renovada num painel adoçado em cores e perfumes diversos. A Sul, a procissão real de montes termina num mar raso espelhando o Altíssimo. Um panorama inolvidável, até onde os olhos podem. Prolongado nos horizontes, sinto-me desobrigado, sem sofrimentos, sem chagas e sem lamentações. Ressuscito nos mistérios da paisagem. Talvez seja porque a variedade da vida é invariável em todos reinos – humano, animal e vegetal – e o desafio da existência é ganho a perdê-lo.