Archive for Novembro, 2012

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Ressonância

30/11/2012

Procuro um verso do Nirvana.
Começo nem sei bem por onde.
Chamo por uma companhia humana,
Mas só uma voz vem e me responde:
– Não mora ninguém nesta cabana!
O aviso é severo e não engana,
Abafado no eco onde se esconde.
– Monges guardiões do templo –
Penso eu.
Sem cuidar que, por exemplo,
O tom da voz pode ser meu.

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História ou imaginação

28/11/2012

Sublevado nos ossudos contrafortes da minha serra, regresso à serenidade pacata de casa e fecho novamente as cortinas aos ímpetos desregrados provenientes da capital do país. Pela manhã, na companhia de um desses amigos que nos passam uma esponja sobre todas as ralações, ainda houve tempo para uma escapadela furtiva a Belém, onde manchas oleosas de sol cobriam o ar de uma luz fria aberta ao Mundo na boca espelhada do Tejo. A meio caminho entre a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, interrompe-nos uma equipagem de jovens angolanos, estudantes de comunicação a explorar o ofício futuro e a cidade passada, e, de microfone em riste e câmara aos ombros, como um lança-foguetes, surge o ataque surpresa à própria perplexidade das perguntas disparadas sobre o Monumento aos Navegantes. O que era, quando tinha sido erigido, qual a sua significação, etcétera, etcétera, etcétera. A exposição do Mundo Português, as comemorações dos cinco séculos de nascimento do infante, o meu patrício algarvio Gil Eanes vencendo o medo numa embarcação a remos, Nuno Gonçalves e os painéis de S. Vicente, o infante santo, Fernão Mendes Pinto em Tanegashima e Mianmar ao mesmo tempo… Enfim… Dobrando este cabo das tormentas que é falar publicamente nos mares altos da vida, enfunei como pude os meus conhecimentos e, de tal modo me deixei levar na exegese epopeica, que, a páginas tantas, já não sabia ao certo se as façanhas exaltadas na retórica eram produto da nossa história antepassada se devaneios da nossa imaginação desmesurada.

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The Black Keys

27/11/2012

Visita de médico a Lisboa para um concerto. Dois dias de regresso precário a esta selvajaria citadina que aprendi a amar por sucessivos encantamentos veniais durante os tempos alados de faculdade. Não será suficiente para sair daqui a rugir os eferreás de outros longes, mas sempre dá para apreciar o bulício musical cujas vibrações desafinadas me lembraram sempre os ritmos cinemáticos de uma charanga de jazz. Lisboa. Uma banda que integrei de improviso durante quatro anos e que agora fico a ver passar ruidosamente nas avenidas.

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Brincar com o fogo

25/11/2012

Viver tudo de todas as maneiras, sentir tudo de todas as maneiras, escrever tudo de todas as maneiras, sem que me cansem a imaginação, a esperança e as forças ocultas da transcendência. Esperar que cada novo dia, batido pelos ventos ciclónicos da inquietação, me traga a chama de um verso inesperado e promissor. Quem me mandou brincar com o fogo onírico da poesia?

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Bicho do mato

24/11/2012

Talvez que só eu perspective as coisas deste modo, mas quando se vai de pólo a pólo caminhando sobre uma realidade funâmbula, tanto montam os clarões neutrais da autocrítica como nada. E depois do mal nos sair das mãos, já se sabe, tentar dourar a pílula só traz ainda mais tragédia à desgraça.
Homem de desregramentos subversivos, puxo por mim até que o esgotamento da minha própria perplexidade me deixe amarfanhado numa ténue pele delicada, engalinhada pelos estímulos de evidências sensíveis; numa derme desidratada nas demolições do insucesso – nada do que faço me satisfaz – escamada por sucessivas reacções alérgicas a uma inexpressividade crónica que me acompanha desde que me lembro. Não será esta mágoa que trago inculcada no perfil, esta dessintonização absurda com o mundo, completamente distinta do “feitio difícil, do mau génio, do ser atreito ao contrário, do bicho do mato que indispõe toda a gente”, que tenho ouvido dizer aos rabos-leva com que me têm identificado ao longo da vida?

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Volatilização

23/11/2012

Quando a vida finalmente me quiser
Fora dos muros desta abstinência
De ser o que sou sem parecer
E um deus qualquer me devolver
Aos caminhos da inocência
Que na meninice se perdeu,
Serei o livro da minha essência
Escrito a branco e transparência
Em folhas que nunca ninguém leu.

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Labirinto

22/11/2012

Acabou-se o dia
Tirou-lhe a fantasia
A divina escuridão.
E foi nesse noturno apagão
Triste, negro e sujo
Que novamente percorri
Um labirinto de agonia e solidão
De que fujo
Desde o dia em que nasci.

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Homem sismo

21/11/2012

Sempre gostava de ver os estremecimentos insofridos que por aqui vou despejando registados no rasto de uma linha trémula sobre o papel de um sismograma. Perfil ultra-sensível subindo e descendo consoante as desafinações inquietas dos dias e, mormente, de mim mesmo, quem o lesse não encontraria escala emotiva onde balizar todo o sofrimento dentado. Richter sentir-se-ia o agoirento responsável pela magnitude dos abalos, Mercalli pelos escombros avivados pelo andar destrutivo do tempo.

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Fruta da época

20/11/2012

Peguei num pé de ilusão
Dum fruto despido ao meio
Pelo corrupio de uma faca.
Planteio-o, reguei-o,
Pus-lhe bosta de vaca.
Criou raízes, pegou de estaca.
E esperei que dum rebento
Florisse e crescesse
Um novo fruto sumarento
Que a toda a gente apetecesse.
Nem que fosse por desfastio
Deste pomar pobre e sombrio
Onde o sol nada amadurece.

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A minha Picota

19/11/2012

Ontem, o mar, hoje, a montanha. Desanimado, meti-me pelos cerros acima até chegar ao topo da Picota, onde alívio agora a minha aflição desiludida seguindo religiosamente a prescrição de uma dieta geológica à base de micas e feldspatos. Perdido como um cão apavorado pelo rebentamento da pólvora, tinha de ser aqui, no cimo desta penedia nua, no centro de uma pobreza cristalina, que eu podia encontrar-me na tradução física exterior dos meus calvários interiores. Uma alma solitária, atribulada, purulenta e em carne viva, submissa à realeza de uma mole titânica, também ela descarnada de revestimentos, exercendo um domínio imperial sobre a restante paisagem estendida a seus pés. Lado a lado, um vulcão de lava eruptiva presumida e um vulcão de lava emotiva reprimida a compreenderem-se nos silêncios gretados das pedras. Exageradamente, tanto tenho ampliado com a lupa dos sentidos a rudeza inexpugnável destes rochedos sieníticos, que dou por mim a desejar ser um aditamento mineral da sua fácies, apenas posto a nu nas areias estéreis de uns míseros poemas cantados às erosões da vida.
Fez-se tarde. Um hálito frio de nortada lambe tudo e barbeia-me a cara em restolho. Lá em baixo, na vila, charutos de fumo acendem-se sobre os telhados, esbatendo a nitidez às pregas da paisagem. Chama-me a lareira doméstica. Deixo de ser espectador enfeudado à Natureza e desço de novo até mim; até esse vale de lágrimas onde serei outra vez serras e serras de tristeza agreste até perder de vista.