Archive for Julho, 2012

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Fóia

31/07/2012

Fóia, Monchique. Fui hoje mostrar ao sobrinho a minha Meca caleidoscópica, o único lugar patrício onde posso certificar-me de que os meus marcos existenciais ainda se encontram no sítio. Integrados na estamenha natural sob o vínculo tutelar do anonimato, subimos, subimos, e ali estávamos os dois, lado a lado no transe da consanguinidade moral com as serranias, de olhos almofadados nas tintas indefinidas de tamanha beleza.

– Olha, tio, daqui vê-se a terra toda do mundo! – irrompeu ele dos rebentos silenciosos da monotonia, como que a fazer-me redescobrir novidades intrínsecas a um panorama invariável tantas vezes repetido e contemplado nos sentidos.

E, sentados em cima de uma pedra aquecida ao sol, com os dorsos da serra em frente e um luminoso mar azul nivelado pela rasura das calmarias em pano de fundo, abraçámo-nos num poema de telúrica ternura: eu, um verso a menos nestas montanhas, que não rima senão assimilado em estrofes de tristeza maciça; ele, um verso a mais, cândido, com o mundo enraizado nos pés e uma paisagem aberta a todos os horizontes da vida.

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Alicerces

31/07/2012

Não sei fazer versos por encomenda, mas foi com quanta honra e quanta lisonja podia empregar à nobreza da causa que me deixei adicionar a este projecto.

Quarenta e dois fotógrafos, quarenta e um escritores e eu fizeram coincidir o movimento estático das imagens com a eloquência polimorfa das palavras.

No final, resultou um livro onde fotografias e textos se ilustram mutuamente num reflexo transparente dos sonhos e da esperança de cada uma das crianças a quem a associação Acreditar acode diariamente.

A aquisição do livro significa um donativo de 5 euros para a construção da Casa Acreditar do Porto.

Apesar de ter assinado o poema com o qual contribuí para a publicação, não posso ficar-me sem render uma sincera homenagem e deixar um aprofundado agradecimento à Professora Ana Paula Almeida por me ter limpado do sarro da desinspiração e, pacientemente, ter ajudado a que os versos saltassem livres dessa prisão.

O livro estará, para já, apenas disponível on-line.

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Férias

30/07/2012

De férias. Mas estar de férias não é isto. Não é este desarranjo, esta contínua faina interior de pegar no sofrimento às oito e largar a desoras para, logo depois, quando o sono recebe o turno – tarefa que, embora de olhos cerrados, cumpre relutantemente – ir a correr prestar contas à patroa ilusão. 

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Heliotrópio

29/07/2012

Ao acordar da manhã

É a aurora de um novo afã

Que se introduz

E se me escapa.

É não sei que buraco de luz

Que o sol não tapa.

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Maresia

28/07/2012

Vazio.

Horas a fio neste mar morto,

A flutuar sobre ondas terrenas.

Mas sem atracar em nenhum porto,

Na paz de águas serenas.

Vazio…

Nada, só quimeras pequenas

E o instinto a balançar neste navio,

Apenas.

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Jogada

27/07/2012

No recreio,
Uma criança tocava a bola:
Um, dois, um, dois…
Mas depois,
Por falta de jeito ou carambola,
Não chegava aos três, por um triz.
Pintada na parede da escola,
Frágil como um pau de giz,
Uma palavra escrita com firmeza:
Felicidade! – Tentei guardá-la na sacola
Mas uma bolada da tristeza
Não quis.

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Sempre a somar

27/07/2012

Mais uma barrela da alma. E o pior é que me lavou na ideia de que morro no vazio absoluto, incompreendido. Mesmo por aqueles a quem, prazerosamente, abri as portas de fora sem me preocupar em fechar primeiro as de dentro. À mínima, enrosco-me numa bola de espinhos como os ouriços-cacheiros no mato; rosno, ladro e mordo, mesmo se as pedradas me passam ao lado; espremo-me todo se me tocam nos pontos fracos. Luto contra mim, luto contra os homens, luto contra os deuses… E o mundo, sem se desviar do próprio eixo um só fio de cabelo que seja, moita. Até as pedras da rua,  impassíveis ao meu queixume, passam por mim como cão por vinha vindimada.

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Breve mensagem de aniversário a quem fizer anos hoje

26/07/2012

Trezentos e sessenta e cinco dias de velhice.

Inteiros, vividos em casas decimais.

O destino bateu-lhes à porta e disse

Que a dor, o amor e tudo mais

Que neles se cumprisse,

Eram milagres fatais

Da meninice

A morrer de causas naturais.

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Névoa

25/07/2012

Manhã de nevoeiro. Mais de quatrocentos anos de ilusões nubladas e um país a gemer de desespero, a desfazer-se em sombras brancas por um rei que não regressa de além nenhum. Torcido assim pela medida da própria fome, não há povo que resista.

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Um pisco

25/07/2012

Hoje, à mesa de uma assembleia sobre o íntimo expediente da vida, é que eu fui a jogo. E saí derrotado, é bom de ver. Um arrazoado sobre o acomodamento às vicissitudes passivas do destino. Um que via o mundo pelo monóculo de um funil, ufano de ir cego aos alvos tenazes desenhados pela determinação, desprezando, pura e simplesmente, os acessórios das investidas. O outro, de firmezas mais dúcteis, que não, que se contorcia ao insondável aceno de outras solicitações, que o caminho da boa consciência se faz numa aproximação gratuíta aos meandros das naturezas sinceras. Pisando atalhos e desvios, alargando os horizontes a novos trilhos e novas clareiras, se necessário. Arrebatado e maravilhado diante destas duas essências avessas, fui recalcando as mágoas até onde o silêncio do pudor permitiu. E quando chegou a minha demão, sem trunfos ou truques dentro das mangas, joguei a carta mais alta da rifada. Não tenho o olhar rectilíneo de falcão focado em cada pulsar da presa, nem trago o pescoço torneado de bufo-real abrindo num círculo perfeito o leque panorâmico da visão a longo alcance. Mesmo quando estas gruas de pedra monchiquenses me içam a 902 metros de perspectivas espraiadas na vontade de voar a semelhantes altitudes de espírito, não passo de um pisco com as pontas das asas cortadas. De olhos cavados, vejo tudo desnivelado, nos fundos das ravinas, à cota arrasada do meu desespero.