Archive for the ‘O Mundo está podre’ Category

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Milagres públicos

17/09/2013

Eis o milagre imperdoável dos nossos dias: darmos aos políticos um palanque de esperança e vermos, depois, o céu que nos prometem afundado na perfídia movediça e desmesurada dos próprios egos. Confundem serviço com servir-se. Baralham de tal forma a realidade, trocam-nos de tal modo as voltas às convicções, que até o nosso desespero lhes serve de pretexto para se legitimarem na presunção ambiciosa da eternidade.

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Toque a rebate

20/03/2013

Na simetria cronológica
Do rectângulo a ocidente
Tudo como antigamente.
No país da arraia-miúda
Nada muda.
Os filhos da revolução
Trabalham em vão
E pagam impostos.
Murchos e de olhos postos
Nos cravos do chão.

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Incultura

08/03/2013

Esta tarde, na paragem de autocarros, é que eu pude demorar as ideias na velha carreira problemática da nossa incultura. Lado a lado, enquanto esperavam a camioneta, duas adolescentes bebiam a calma da tarde, fazendo os possíveis por ultrapassar os atrasos da própria vida nos giros do mundo. A portuguesa, enviava mensagens pelo telemóvel, a alemã lia o Werther.

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Catastrofismo intergaláctico

16/02/2013

É um fenómeno perturbador. Desde que leixões celestes começaram a cruzar os céus diariamente, parece ter sido desmantelado o ímpeto cataclísmico de sismos e vulcões. Medidos por um estalão cósmico, não passam de pruridos telúricos, e é pena. Embora compreenda o destempero, até eu, que ando sempre de olhos postos no chão, com uma vergonha infinita de mim e dos outros, desviei a órbita e passei grande parte do dia a olhar esperançosamente para o firmamento, na expectativa de que uma pedrada incandescente me pudesse atingir, cumprindo a sua epifania. E nem assim…

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Rosnar de Tessalónica

14/02/2013

Estava rabujado, fraco de pachorra, e com as duas páginas mal-humoradas de Os cães de Tessalónica, do Askildsen, tomadas ao pequeno-almoço, bem frescas no génio. Só consegui arremeter de raspão à disponibilidade desgarrada na provocação:
– Não se lastime tanto, rapaz! Exorbite as suas qualidades. Olhe que as tem! Sempre há-de achar algumas no espelho das palavras que lê nos seus livros.
– E para quê? Dançar ufanamente ao rufar das ovações da consciência é meio caminho andado para ferir-lhes a legitimidade de morte.
– Então reproduza aquelas louvaminhas que lhe vão deixando de onde em onde! – E foi a faísca no rastilho.
– Já olhou bem para a Lua?! Acende-se todas as noites sem necessidade de acessórios fluorescentes a comprovar-lhe o brilho no escuro. No entanto, cumpre diligentemente o seu papel…
Pobres de nós! Não conseguimos conduzir discretamente o carro da humildade sem arroubos de luzes a encandear quem nos cruza.

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Mercados

05/02/2013

Em que país fica um país que é Portugal,
Onde há fome e há as contas dos doutores,
E a História e o Povo não são mais capital,
Capital é a cidade imaterial da Bolsa de Valores?

Que pátria é essa de poetas indignados
Cantando contra as esperanças dissolutas
De quem está no desespero dos mercados
Como os homens estão para as prostitutas?

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Dizer não

29/01/2013

De todas as formas com que o poder se prefigura, a única que me fascina verdadeiramente é a de ser usufrutuário do poder da abnegação. Entre tantos dons inatos que trazemos agarrados à vontade, dizer não é aquele em que mais se afirma o inexorável instinto de preservação intrínseco a cada existência livre. No meu caso, é um modo anquilosado de abjuração que, de resto, devo à pia baptismal, e da qual faço uso sempre que me dão a cheirar o perfume inebriante e tirânico do outro poder, o temporal, que tudo deforma, tudo perverte, tudo corrompe. É como se respondesse ainda à interpelação do Padre Ferro, ungido pelo santo óleo dos catecúmenos da liberdade, limpo do pecado original:

– Renuncias a Satanás e a todos os seus anjos?
– Sim, renuncio!

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Bicho do mato

24/11/2012

Talvez que só eu perspective as coisas deste modo, mas quando se vai de pólo a pólo caminhando sobre uma realidade funâmbula, tanto montam os clarões neutrais da autocrítica como nada. E depois do mal nos sair das mãos, já se sabe, tentar dourar a pílula só traz ainda mais tragédia à desgraça.
Homem de desregramentos subversivos, puxo por mim até que o esgotamento da minha própria perplexidade me deixe amarfanhado numa ténue pele delicada, engalinhada pelos estímulos de evidências sensíveis; numa derme desidratada nas demolições do insucesso – nada do que faço me satisfaz – escamada por sucessivas reacções alérgicas a uma inexpressividade crónica que me acompanha desde que me lembro. Não será esta mágoa que trago inculcada no perfil, esta dessintonização absurda com o mundo, completamente distinta do “feitio difícil, do mau génio, do ser atreito ao contrário, do bicho do mato que indispõe toda a gente”, que tenho ouvido dizer aos rabos-leva com que me têm identificado ao longo da vida?

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Volatilização

23/11/2012

Quando a vida finalmente me quiser
Fora dos muros desta abstinência
De ser o que sou sem parecer
E um deus qualquer me devolver
Aos caminhos da inocência
Que na meninice se perdeu,
Serei o livro da minha essência
Escrito a branco e transparência
Em folhas que nunca ninguém leu.

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Greve Geral

16/11/2012

Greve Geral. Esmagado por um Governo que apenas o identifica e reconhece pelo número de contribuinte, o povo, no seu pragmatismo medular e objetivo, crente de que os homens públicos nem tão pouco merecem o chão que pisam, arrancou a calçada à rua e arremessou-a contra a autoridade. Esta, sem capotes à medida maciça da chuva, meteu a artilharia toda e dissipou a tempestade à bastonada, evidentemente. Portugal também é isto: forças desperdiçadas, sem rumo nem fim, que até para dizer basta precisam pedir a bênção violentada da polícia.