Posts Tagged ‘Natureza’

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Eflúvio

12/03/2013

Um caudal canta atrás de nós.
Um rio persegue a foz
Na música calma da Lua.
Há nela qualquer coisa que flutua…
Um tom limpo no ar líquido da voz
Igual ao desatar de nós
Correndo no respirar da tua
Quando somos a natureza a sós
E molhas beijos no meu rosto.
Como se eu fosse calor de estio
E tu a sede deste rio
Beijando as serras em Agosto.

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Folha caduca

17/02/2013

Quanto mais franco, quanto mais livre, quanto mais autêntico, quanto mais verdadeiro, mais só. A sinceridade é uma porta dolorosa aberta à solidão.

FOLHA CADUCA

Dá gosto ver, porque impressiona,
O que fica da Natureza desfolhada.
Mesmo sem flores nem folhas na ramada,
Qualquer árvore invernosa emociona
Pela serenidade em que se vê frutificada.
Enraizada na terra doce da eternidade
Despe-a e veste-a o instinto de preservação.
Vive abrolhada em singularidade:
Dá frutos tão brutos, que apodrecem no chão.

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Estados de alma e a paisagem

16/10/2012

Queria que eu mudasse de lentes , que transformasse prantos exasperados em bebedeiras alegres, que comparticipasse na exaltação da flor sedosa do cardo e não no gume afiado dos espinhos:

– Você escreva coisas mais animadas. Saia das trevas. Parece que está sempre a morrer afogado em aguaceiros de desespero!

E não viu as fresas de sol a rasgar um sulco dourado numas nuvens de tempestade e terra preta que planavam sobre as várzeas de São Marcos.

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Cascata do Barbelote

29/08/2012

Tanto tenho bendito os inquebráveis encantos desta cascata renovados a cada gota de água ordenhada às penedias circundantes, que hoje, ao conhecer por dentro as entranhas arruinadas da velha aldeia sobrestante, paradas num silêncio virginal imposto por uma seca agressiva que cala a fúria até ao mais irreverente dos regatos, é que eu pude concluir que todas as palavras sobre ela ditas ou escritas fazem de mim um insanável pecador a jurar o santo nome da Natureza em vão.

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Dia da Vila

17/05/2012

É dia da vila e não podia proceder em melhor conformidade com a significação ígnea desta data. Junto a um antigo moinho de rodízio, num esplendor resguardado onde a água já só serve de força motriz às mós do tempo e à memória colectiva da serra, assisto, engrossando o caudal de bem-aventurados, a mais um corpo a corpo entre dois frémitos gregários que, desde as mais baldadas horas da minha meninice, se digladiam no desterrado coliseu da consciência. Ao sermão do pároco, arejado, gratuito, fiel aos paramentos votivos da Sagrada Liturgia, responde um ribeiro no seu salmo habitual, livre, alodial, aos saltos acrobáticos entre os novelos maciços de sienito, dando graças multicores à paisagem estendida vale abaixo, sob a abobada celestial de sombra fresca e verde a jorrar dos amieiros. O que podem a Religião e a Natureza contra a corrosão imperativa dos calendários! Cada uma delas, incansavelmente, vai pregando a sua santidade. Uma, à força repetida da rogação, a lembrar-nos de que somos pecadores; a outra, à força bruta e vívida da renovação, a fazer de nós sonhadores. E é reincidindo em ambas que quase me dou por convertido à ideia mística da Eternidade.

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1º de Maio

01/05/2012

A manhã foi um regresso à faina de andarilho. Em passadas bem medidas no mapa do entendimento, cheguei à conclusão: caminhar é ler com as pernas. A varrer as veredas sinuosas desta minha Serra, perco-me na virgindade escabrosa de cada encosta, reajo com não sei que emotiva inocência aos acenos solenes das flores de esteva, farejo as perdizes aninhadas no aroma silvestre a rosmaninho, ameigam-se-me os tojos das arrelias nos ribeiros a cantar músicas de frescura tiradas aos fundos das gargantas. E não estou mais aqui. Diante de uma rude penedia, de um talhão por cavar, de um barranco talhado a pico pela água da chuva ou de uma ravina abissal, estou sempre no terreno unigénito de quem se estreia na beleza exuberante de todos os lugares. É um deslumbramento absoluto, lúdico, de saciedade dos sentidos. Sincronizado na Natureza, então, gozo o privilégio presumido que, desgraçadamente, só de longe em longe vou experimentando junto dos meus semelhantes: devoramo-nos com fome um do outro.  Mais pelos embargos decretados pelas minhas falências do que pela falta de estímulos significativos, sei da minha crónica dificuldade em chegar aos corações alheios. Mas fazer o quê? Sou assim… Procuro sempre autenticar-me na generosidade do chão que piso e escorar a minha humanidade desencantada empanturrado em mantras de terra.

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Pedras

16/02/2012

Não sei como consegue. Cumpliciando-me na catarse, vai cavando, removendo laboriosamente o saibro inútil do fundo da galeria, e quando vou a dar conta, estou a deitar cá para fora as gangas todas.

– As minhas vidas… Uma que parece, outra que se exibe. Uma é só cascalho e a outra, íntima, funda, afectiva, é só rocha-mãe.

– Olha que entre a rocha-mãe, às vezes, encontram-se filões raros de pedras preciosas…

– É um facto. Mas olhe que de pedras percebo eu.

Não sei se a convenci. Acontece, realmente, que tardo em apanhar o veio a pulsar na nascente dos dias. É sempre em esforço que me afeiçoo ao dom de viver. Nunca consegui ser mais que um pobre e absurdo trovador de naturezas mortas.

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Achas na fogueira

11/01/2012

Final de tarde a rachar lenha, num afã libertador, sob o olhar imaginado, zelador e instrutivo dos meus já idos avós cavadores. Fora da alçada inibitiva dos mapas e do pensamento, a pastar o tempo como um animal, plasmado nas mais elementares forças da Natureza, fui cumprindo as ordens espectrais com a manha de um lenheiro. Tomba daqui, golpeia dali, o machado galvanizado lá foi desfazendo a dente os anéis concêntricos de uma nogueira seca e velha, da idade do mundo. Agora, não satisfeito ainda, cá estou sofregamente agarrado às teclas, a deitar no fogo preso deste arremedo de diário as achas da minha dureza intransigente, das minhas obsessões, das minhas misérias, até que não reste um ar de cinza sobre bisbilhotices inconfessáveis.