Archive for Janeiro, 2013

h1

Utopia

30/01/2013

Nem toda a liberdade
Nem as amarras do destino.
Tenho apenas a vontade
De ser como um menino
Que brinca na solidão da rua
E volta a casa fazendo o pino:
As mãos na Terra, os pés na Lua.

Não tenho toda a liberdade,
Mas procuro-a em cada passo
Que dou.
Como aquele pardal que poisou no terraço
E ao ver a imensidão do Espaço
Abriu asas e voou.

h1

Dizer não

29/01/2013

De todas as formas com que o poder se prefigura, a única que me fascina verdadeiramente é a de ser usufrutuário do poder da abnegação. Entre tantos dons inatos que trazemos agarrados à vontade, dizer não é aquele em que mais se afirma o inexorável instinto de preservação intrínseco a cada existência livre. No meu caso, é um modo anquilosado de abjuração que, de resto, devo à pia baptismal, e da qual faço uso sempre que me dão a cheirar o perfume inebriante e tirânico do outro poder, o temporal, que tudo deforma, tudo perverte, tudo corrompe. É como se respondesse ainda à interpelação do Padre Ferro, ungido pelo santo óleo dos catecúmenos da liberdade, limpo do pecado original:

– Renuncias a Satanás e a todos os seus anjos?
– Sim, renuncio!

h1

Insónia

23/01/2013

Não me peçam para sonhar.
Porque o mal é, nos intervalos,
Não querer mais acordar.
Ter novos sonhos e desejar
Concretizá-los
Num futuro presente.
Não me digam que a sonhar
Também se sente
Palpitar
Um consolo redentor
No coração.
Não, se a dimensão
Do sonho for
Maior que a ilusão
Do sonhador.

h1

Insónias

22/01/2013

Enquanto os outros dormem e aprofundam as possibilidades infinitas dos sonhos nas enxergas do subconsciente, eu permaneço desperto e com uma pilha de silêncios escuros à cabeceira, velando a impossibilidade cismada nos meus.

h1

Memória Futura

22/01/2013

Não sei quando foi,
Mas ainda me lembro.
Nos teus olhos era
O mês da Primavera,
Nos meus ia Dezembro.
Havia em ti um sol que refulgia
A candura de um jardim,
E só no meu céu chovia,
Era cinzento dentro de mim.
Mas contra a natureza dessa lei,
Quis ser paisagem florida.
Voltei atrás e entrei
Pela porta da saída,
E quando te encontrei,
Eras terra ressequida.

h1

Inocência

16/01/2013

Regresso ao recreio das lembranças,
Àquele tempo em que as crianças
Molham sorrisos nos lábios
E com brincadeiras mansas,
São já futuros sábios
Duma lição não aprendida.
Pequenos no tamanho,
Infantes da pureza desmedida
Que só damos conta de ter ganho,
Depois de ver perdida.

h1

Mar de levadia

15/01/2013

Não tenho paz e não a concedo a quem me rodeia. Embarquei a bater um mar de levadia e de inquietações onde nada está onde devia estar. Ou vou ao fundo, ou tenho a sorte de Álvares Cabral. A sorte de descobrir terra firme por acaso.

h1

Escritura

14/01/2013

É um mal sem cura…
Se escrevo
É porque o devo
À procura
De um novo alento
Ao sofrimento.
Ou tudo ou nada,
Nem mais nem menos,
Nem menos nem mais,
A medida é tão imaginada,
Que os sonhos, mesmo pequenos,
São como as coisas reais.
Ora agitados, ora serenos,
Feitos de letras e sinais.

h1

Causa poética

12/01/2013

Homens iguais aos mais,
Cheios de tempo e de imensidade
Numa bússola ou num sextante
Procuram nos versos esse instante
Onde a geografia é toda eternidade.
Escadas erguidas em caracol
Subindo a paisagens abertas,
São o céu e são profetas:
Raios de sol sobre a areia mole
Perdidos em solidões desertas,
Têm nas sombras o recorte
Dum ponteiro dizendo o Norte
Quando as horas são incertas.

h1

Pathos

09/01/2013

Pathos. Recuperei, hoje, a palavra aos dicionários etimológicos. Se tivesse que dar um título pleno de significação e ressonância à pilha de hieróglifos que se deixam decifrar neste diário, seria este. Traje semântico de gala para um registo quotidiano de um peculiar modo – em igual medida desgraçado e apaixonado – de ver o mundo e de me desassossegar com ele, uma vez escancarado na praça pública, de laço apertado, mas com nódoas na camisa e rasgões nos joelhos, não seria mais que um gemido dilacerado pelas mesmas ruínas sofridas por outros antes de mim.