Archive for Janeiro, 2014

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Agradecimento

02/01/2014

Ainda com os nervos em fogo de artifício. O que, dadas as últimas migalhas de mais trezentas e sessenta e cinco fatias de esperança renovada, dá uma farpela adequada ao momento. Escrevi ontem mesmo que, à excepção dos livros que leio, sou uma pessoa desinteressantíssima. Mas o que devia ter dito é que, à excepção dos amigos que tenho, sou uma pessoa desinteressantíssima. Herdei nos cromossomas a capacidade inata de fazer do reconhecimento pelo que nos é dado uma reação instintiva do coração e não uma regra passiva da boa educação. Por isso, cá estou a agradecer sentidamente a largueza de horizontes de todas as palavras, gestos e silêncios de ternura e generosidade que me foram concedidos durante o dia de ontem. Sei que a mediocridade das minhas frustrações, a crueza da minha sinceridade, o arame farpado dos meus medos, a intransigência da minha solidão nem sempre me têm tornado digno portador do respeito e carinho que me têm outorgado. Enfim… defeitos de fabrico que se avivam e se esbatem com o andar do prazo de validade. Porém, tenho plena consciência da minha boa fortuna em estar rodeado de pessoas junto de quem, perante a grandeza da sua presença, me apetece ajoelhar e de que o melhor do interior de nós está sempre no que fazemos para fora de nós.
Não vou repetir o estafado circunlóquio de final de ano, a desejar, a torto e a direto, boas entradas no tempo. O que hoje acaba, amanhã recomeça e nada deixará de ser como é. O velho ano está gasto e não deixa saudades, não tanto pelo que tive e perdi, mas pelo que me tirou sem me ter dado, e que é, como se sabe, um dos géneros mais terríveis de inquietação. Um anseio inconsolável por não sei bem o quê a que os alemães sabiamente nomearam “sehnsucht”. Ao longo de trinta e um anos, tenho-me confrontado com todas as perguntas que um homem deve fazer a si próprio e só tenho recebido a resposta de novas perguntas. Em apreço pela verdade, e no domínio dessa entidade a que chamam de Felicidade e me parece ser uma doença boa que só acontece aos outros, o melhor é fazer como o Horacio Oliveira, no Rayuela, do Cortázar: andar sem a procurar, mas sabendo que ando para a encontrar.

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Trinta e um

02/01/2014

Mais um ano averbado à curta conta da vida. Trinta e um. O número entra em alvoroço pela janela emotiva dos sentidos, provoca um pé de vento na cabeça e desarruma a significação deste dia natalício. A vida afectiva adiada, nenhuma certeza, todos os sonhos verdadeiros de ser um homem do meu tempo por cumprir. Ao assentar isto no diário, vêm-me à lembrança as palavras secas escritas pela mulher de Tolstoi e às quais já recorreram Miguel Torga, no diário, e António Lobo Antunes, nas crónicas: “morei quarenta anos com Leão Nicolaievitch e nunca soube que espécie de homem ele era”. O bom da literatura universal é que a ductilidade da sua medida tanto remedeia dois génios como o Torga e o Lobo Antunes, como faz gala num desgraçado como eu. De resto, vivo comigo há trinta e um anos, sei de que cepa terrosa venho, conheço-me como ninguém, e também não sei que espécie de homem sou. Tirando os livros que leio, sou uma pessoa desinteressantíssima. Ou talvez seja – lembro-me agora do célebre episódio de Mozart, aos seis anos, a correr desamparado para o colo de Maria Antonieta e a pedi-la em casamento – uma criança que apenas cresceu para fora e vive num irreprimível estado de perplexidade, ansiosa que o amem incondicionalmente.

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É tarde, é cedo, é tarde

02/01/2014

É TARDE É CEDO É TARDE

É tarde de mais para amar,
É cedo de mais para desistir,
É tarde de mais para sentir,
É cedo de mais para odiar.
É tarde de mais para rir,
É cedo de mais para chorar,
É tarde de mais para partir,
É cedo de mais para voltar.
É cedo de mais para o medo,
É tarde de mais para a coragem,
É cedo de mais para o degredo,
É tarde de mais para ir de viagem.
É tarde de mais para o futuro,
É cedo de mais para o passado,
É tarde de mais para o escuro,
É cedo de mais para o ilustrado.
É tarde de mais para a morte,
É cedo de mais para o azar,
É tarde de mais para a sorte,
É cedo de mais para começar.
É tarde de mais para a esperança,
É cedo de mais para ser criança,
É tarde de mais para não ter idade,
É cedo de mais para o desespero,
É tarde de mais para o exagero,
É cedo de mais para a eternidade,
É tarde de mais para o momento,
É cedo de mais para a saudade.
É tarde de mais para ouvir o vento,
É cedo de mais para o sofrimento,
É tarde de mais para a promessa,
É cedo de mais para dizer não,
É tarde de mais para a afirmação.
É cedo de mais para a pressa,
É tarde de mais para a lentidão,
O silêncio redondo que me atravessa
Vai e volta sem lhe deitar a mão.
Nos ponteiros do relógio, agora
É tarde e cedo e é outra hora:
O tempo é o espaço da solidão.

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Natal

02/01/2014

É um poema feito de luzes.
De cores que não se entendem.
De versos que se acendem
E logo depois se apagam
E a seguir se transcendem
E nunca mais se estragam.
Letras que ardem e são estrelas
Feitas de terra e água do mar
A iluminar a sala de estar.
Para que a gente possa lê-las,
Para conseguirmos vê-las
Numa árvore, a piscar,
Basta-nos o dom de sonhar.
Olhar o papel e ver o tecto,
Fazer da palavra o objecto,
Deixar a magia voar no ar
E esperar, ao desenhá-la,
Que a fantasia do Natal,
A brilhar no céu da sala,
Seja a expressão do real
Só de a gente imaginá-la.

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Partida

02/01/2014

Esperei-te como quem espera
Um rasgo íntimo da Poesia.
Mas o tempo não parava e era
Uma dor que trespassava a teimosia.

Nesse esforço paciente e obstinado,
Cruzava os lugares onde caminhas,
Fazia de mim um lugar desocupado,
O bilhete reservado que não tinhas.

Combati a solidão com o isolamento,
Até que não pude esperar mais.
Parto no comboio do sofrimento,
Vou “a poder de lágrimas e ais”.

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Assinaturas

02/01/2014

Agora que assento um pouco mais da poeira turbulenta dos meus dias no diário, quase me convenço de que a culpa de ter este ar de gato castrado, de viver escondido na paralisia de um retrato sério, de engolir nos olhos um caudal de lágrimas dum mar interior, não é minha. Bem pode dizê-lo esta minha amiga, que, na sua afectuosidade profunda, caminha sobre o fosso de lodo e crocodilos que me separa do resto do mundo na ligeireza de quem desliza à superfície das águas em passos flutuantes de ballet e me consegue pôr a assinar uns versos escanzelados que fiz no ano passado, a propósito do Natal. É uma coisa que detesto fazer. Porque gostava que os meus versos tivessem voz própria e, não tendo, porque não sou ninguém, não quero ser ninguém, e não sendo ninguém sou este coro múltiplo e anónimo de vozes turvas dentro de mim a dizer que sou o somatório fragmentado de tantos nadas. Mas é dos escassos amigos que me lê, não conheço outra pessoa genuinamente mais alegre, com tanta poesia no íntimo, cheia de sorrisos em cada gesto, e a oitava falência mortal seria a indecência de dizer não a quem nos dá tanto. Principalmente quando não o merecemos. Cada minuto de atenção que me consente, sabe-me por toda a vida. – Lembro-me de Maria Antonieta à beira do cadafalso a suplicar ao verdugo: “só mais um minuto, só mais um minuto, senhor carrasco!”, como se os sessenta estalidos secos no ponteiro dos segundos durassem uma boa eternidade que não passa nunca. – E, palavra de honra, que, durante cada um desses minutos, as vozes implacáveis do desprezo a repetirem que não sou ninguém cessam de agitar-se e sou momentânea e descaradamente feliz.

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Porque não um livro?

02/01/2014

Encontrou-me de olhos embaciados, a somar consoantes e vogais na palavra chuva escrita a traço fino e mudo na carta sinóptica do Jornal. Ao meu lado, o livro que me acompanhava, – estamos sempre a sós, eu e um livro, eu e eu, naquele lugar.
– E você, quando é que escreve um livro?
– E quem o leria? Um livro é uma obra da Natureza. Demora muito tempo erguer uma cordilheira articulada de palavras que a borracha do tempo não apague facilmente – respondi, a sentir a mudança de pressão, as linhas na carta sinóptica abaixo dos 1013 hectopascais.
– Mas escreve para a eternidade ou quê?!
Estávamos numa pastelaria, e a pergunta merecia uma resposta açucarada, adivinhando céu limpo, contra todas as previsões:
– Já me contentava ver uma frase ou um versozinho na cobertura de um bolo de aniversário. Ao menos dava aos meus amigos a minha atmosfera emotiva servida às fatias.
Mal sabia ele que os versos que me vieram à cabeça, eram estes:
“Erros meus, má fortuna, amor ardente.”
Versos que, como é consabido, nem sequer são da minha responsabilidade.

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Mais solidão

02/01/2014

Cá estou eu, no meu exílio interior, preparado para pousar a cabeça numa almofada de penas de solidão. A solidão. Prezo que ma prezem, gosto deste ermo onde me escondo de mim mesmo e que, visto de fora, parece sempre a mais distante das lonjuras, mas continuo sem saber encontrar uma maneira de a definir sem lhe dar uma aparência ainda mais árida, mais espinhosa e mais repulsiva. É uma coisa tão grande, feita de uma clareira de ausências ocultas de tal modo inestimáveis, que por muito que leia dicionários, por muito que devore literatura, por muito que me desunhe a escrever, por muito que a vá enchendo de palavras, de todas as que, até agora, conheço, não existe uma que caiba dentro de tamanha infinitude.

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Crónica de umas crónicas

02/01/2014

Comecei hoje a ler mais um Livro de Crónicas do Lobo Antunes e comecei mal. Principia o primeiro texto com a especificação de uma data precisa. Um dia de verão, grande, como aquelas visitas inoportunas que vêm sem aviso, desarrumam ainda mais os esconsos da sala e vão ficando, ficando, sem pressa de ir embora. Um dia grande, de horizontes descampados, como uma imensa paisagem sem relevos. E o mal de dias assim é que nele tanto se podem desenrolar alegrias infinitas como se podem estender grandes prantos desmedidos. Tudo depende do lado de dentro dos olhos que lêem o calendário. Mas foi um livro oferecido por alguém a quem, à força da ternura escondida nas lágrimas e nos sorrisos, posso encostar a cabeça e dizer “mãe”, e é por isso que vou atravessar estas páginas com a mesma obsessão com que quero enfrentar as páginas em branco da minha vida: com a coragem de assumir como medularmente meus os sentimentos que me doem e fazem de mim esta existência empedernida que cada vez mais se desconhece a conhecer-se. E depois é esperar que a significação daquela data não seja mais uma intermitência interrogativa e possa, com o viajar do tempo, tornar-se num dia que passa por nós sem darmos por ele. Um dia de verão igual aos mais, grande e sem palavras. Grande como um ponto final nesta vontade sofrida de escrever.

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Regresso a casa

02/01/2014

Depois de cinco dias retemperados em Lisboa, regresso a casa. Mas precisava de prolongar esta massagem do esquecimento por, pelo menos, mais uns cento e setenta e cinco. Que os dedos citadinos do deslumbramento fossem penetrando suavemente em círculos lentos nas contraturas emotivas até que este corpo macerado por dores fantasma deixasse de o ser, afinal. Que chegasse a um par de coordenadas precisas entre aquilo que sou, que é de Monchique, e aquilo que sonhadoramente queria ser, que é daqui, e que o mar de dúvidas e contradições em que vivo balanceado serenasse em ondas descansadas. Mas é um regressos casa. E o sítio de onde somos só muda de lugar de duas formas: ou pelo músculo cataclísmico da geologia ou porque os olhos surpreendidos ou reprovadores que o reencontram não são mais os mesmos. Ora este meu regresso é animado por uma alegre melancolia. Qualquer coisa parecida àquela que sinto quando saio a assobiar do quarto pela manhã fora e a minha mãe me diz:
– Lindamente canta o rouxinol pela aurora!
E só eu e ela sabemos que o silvo cónico que me sai dos lábios é apenas mais uma maneira silenciosa de livrar-me do desespero.