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Assinaturas

02/01/2014

Agora que assento um pouco mais da poeira turbulenta dos meus dias no diário, quase me convenço de que a culpa de ter este ar de gato castrado, de viver escondido na paralisia de um retrato sério, de engolir nos olhos um caudal de lágrimas dum mar interior, não é minha. Bem pode dizê-lo esta minha amiga, que, na sua afectuosidade profunda, caminha sobre o fosso de lodo e crocodilos que me separa do resto do mundo na ligeireza de quem desliza à superfície das águas em passos flutuantes de ballet e me consegue pôr a assinar uns versos escanzelados que fiz no ano passado, a propósito do Natal. É uma coisa que detesto fazer. Porque gostava que os meus versos tivessem voz própria e, não tendo, porque não sou ninguém, não quero ser ninguém, e não sendo ninguém sou este coro múltiplo e anónimo de vozes turvas dentro de mim a dizer que sou o somatório fragmentado de tantos nadas. Mas é dos escassos amigos que me lê, não conheço outra pessoa genuinamente mais alegre, com tanta poesia no íntimo, cheia de sorrisos em cada gesto, e a oitava falência mortal seria a indecência de dizer não a quem nos dá tanto. Principalmente quando não o merecemos. Cada minuto de atenção que me consente, sabe-me por toda a vida. – Lembro-me de Maria Antonieta à beira do cadafalso a suplicar ao verdugo: “só mais um minuto, só mais um minuto, senhor carrasco!”, como se os sessenta estalidos secos no ponteiro dos segundos durassem uma boa eternidade que não passa nunca. – E, palavra de honra, que, durante cada um desses minutos, as vozes implacáveis do desprezo a repetirem que não sou ninguém cessam de agitar-se e sou momentânea e descaradamente feliz.

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