Archive for the ‘Humanismo’ Category

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A superfície profunda da amizade

17/09/2013

Dei-lhe a conhecer os marcos que lhe garantiam a inexpugnabilidade de uma superfície incomensurável do meu coração. A César o que é de César… Ao longo de trinta anos de faina existencial, tenho alanceado o espectáculo tumultuoso da minha existência empenhado em compreender os outros, de modo a poder entender nas sobras qualquer coisa de mim. E, nas alturas mais desassossegadas, consciente ou inconscientemente, foi ela quem mais próximo esteve de me dar a graça complacente da compreensão. É dos poucos amigos que poderá dizer o que sou sem recorrer às charlatanices da adivinhação. É tão medularmente feliz que, quando a encontro, somos, por contágio inefável, duas felicidades congraçadas: uma que é em toda a extensão da evidência, e outra que gostava de ser para além da expressão da aparência.

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Promessa

17/09/2013

Começo o poema com Esperança.
Se essa é a ponta da lança
Com que guerreio o dia-a-dia,
A resignação seria
Uma escandalosa traição
À firme condição
De homem natural.
E, por isso, na minha timidez,
Prometo versos de lucidez
Até final.

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Saudades

17/09/2013

Colocou-me numa situação limite, mas desembainhei o gume do raciocínio imediato e creio que a convenci:
– Se se mudasse para o planeta Marte, o que acha que deixaria de mais valioso?
– Saudades e os meus poemas.
– E porquê?
– É que em ambos os casos, não haveria disputas engulhadas na hora de fazer as partilhas.

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Milagres públicos

17/09/2013

Eis o milagre imperdoável dos nossos dias: darmos aos políticos um palanque de esperança e vermos, depois, o céu que nos prometem afundado na perfídia movediça e desmesurada dos próprios egos. Confundem serviço com servir-se. Baralham de tal forma a realidade, trocam-nos de tal modo as voltas às convicções, que até o nosso desespero lhes serve de pretexto para se legitimarem na presunção ambiciosa da eternidade.

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Perdição

17/09/2013

Apostei tudo e perdi.
Quis ser o primeiro,
Quis ser o mais verdadeiro
Aos pés dos deuses humanos
Que criei.
Mas apenas ganhei
O prémio dos desenganos
Que arranjei
Nas entrelinhas:
Dores fundas e mesquinhas
Que infligi
E sofri
Como se fossem minhas.

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Paraíso

17/09/2013

No tempo em que fomos felizes
Eu não contava os dias.
Os meus olhos eram raízes
De amor quando sorrias.
Ou quando, simplesmente,
Respiravas e me dizias
Que não regasse a macieira,
Que deixasse a serpente
Viver nela a vida inteira,
Porque nós, que éramos gente,
Seríamos felizes de qualquer maneira.
Mas agora cumprimos penas
Por não ter sabido guardar
Essas horas tão serenas.
Presos a paixões terrenas
Só as podemos provar
A imaginar, apenas.

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Os caminhos da dúvida

17/09/2013

Nem por nada subir a viseira ao elmo. Manter a lança da ilusão em punho. Reagir. Rebelar-me contra os deuses. Rebelar-me contra os homens. Rebelar-me contra mim. Dar passadas firmes na certeza dos caminhos sinuosos da dúvida.

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A vida cívica

25/08/2013

Nova assembleia cívica até desoras. E o que sobrou da minha participação – se é que se pode chamar participação à total falta de presença cumpliciadora – foi um poema arrancado a ferros, anotado no papel ainda com salitre e grãos de areia nos versos, horas depois de mais uma tarde a encarar os feitiços líricos do mar. O que sou a menos socialmente sou a mais naturalmente. O melhor que tenho para dar no vínculo de cidadão a tempo inteiro com que fui investido pelos imperativos da consciência vem, quando vem, na forma banal e ridícula de versos, na contumácia do silêncio, ou no anonimato violentado da minha solidão. Existir, mas numa discrição renovada diariamente até à quase inexistência.
De modo que quando o corifeu do concílio deu por encerrados os trabalhos, desembainhei as pernas e meti a correr pela escuridão das ruas de regresso a um lugar familiar onde pudesse estar a salvo da crispação interna em que me vou ratando à traição. Sou como aqueles bichos do mato que, depois de muitas horas em cativeiro, se esgueiram à primeira oportunidade pela fresta mais estreita de liberdade que possam ver aberta.

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A minha avó

30/07/2013

Depois que a minha avó contava uma história, eu tapava os ouvidos. Vedava-os bem para que essas histórias não me fugissem da cabeça. As minhas mãos em concha eram auscultadores de silêncio e eu só podia ouvir a minha imaginação. Sentado ao meu lado, num mocho que o meu pai construíra quando tinha a idade do meu irmão, o meu irmão pegava num galho com a ponta em brasa e riscava o ar em movimentos bruscos, acesos, como se escrevesse a incandescência prolongada dessas histórias numa folha de eternidade transparente. Eu pegava num desses galhos e saíamos os dois para a rua desenhando fios de luz contra a escuridão da noite. Eram as nossas varinhas mágicas, espetadas de estrelas que deixavam um brilho arrastado e calmo sobre os nossos olhos, como pequenas gotas de água a arder.
A minha avó surgia à ombreira da porta e, embrulhada na bata azul que, para mim, era feita da infinidade do céu, ralhava:
– Quem brinca com o fogo mija na cama. – Entrava em casa, um passo demorado atrás do outro acariciando a passadeira de plástico aos losangos, e sentava-se no sofá  mutilado por inúmeros rasgões em frente à televisão, fazendo renda, vendo o “romance”, conforme ela dizia.
Nós ficávamos na rua até que a luz rubra no final dos pauzinhos se extinguisse de vez. A seguir, voltávamos para dentro. Muitas vezes, a minha avó já tinha adormecido. O reflexo azul da película de celofane sobre as lentes dos óculos na ponta do nariz era o único movimento que existia dentro da sala cheia do preto e branco da televisão e das fotografias antigas. Tudo o resto parecia imóvel. Só os olhos da fotografia do meu avô pareciam procurar-me para onde quer que eu me movimentasse na exiguidade da sala. Como se me quisessem conhecer atrás dos meus olhos, depois do meu tempo não se ter sincronizado no dele.
Noutras ocasiões, a minha avó estava desligada de tudo. Os brasileiros do romance falando para o boneco. A minha avó tinha trocado os óculos redondos por duas meias luas de onde via pormenores que eu e o meu irmão não víamos entre os fios de renda. Quando a minha avó fazia renda, era como se tecesse o próprio tempo e o paralisasse em naperões que hoje estão espalhados pelas mesas-de-cabeceira nas casas das minhas tias, nas televisões das casas dos meus tios, nas arcas de roupa velha das casas dos meus primos. A minha avó não foi à escola. A miséria obrigou-a a ser analfabeta. Foi a pessoa mais inteligente que conheci. De modo que aquelas peças de renda foram os bilhetes mais belos e mais delicados que a minha avó escreveu. No seu jeito entrelaçado, numa linguagem de pontos caseados, como se contivessem enredadas as malhas das histórias que a minha avó contava, eles dizem:
– Não se esqueçam de mim!
Todos os dias me lembro da minha avó e desses verões que os olhos marinhos dela refrescavam. Recordo, afogueado, os dias intermináveis de calor sariano e sem aragens a correr, em que eu, o meu irmão e o Mário tomávamos banho em tanques. Lembro-me de subir ao telhado da estrebaria do primo Anacleto. De saltar os canteiros do parente Viriato. De derramar água para os buracos no chão e fazer sair os grilos que havia lá dentro. Para fazer a vida vir ao de cima, basta juntar água. De destruir ninhos de vespas e combater a fúria das desalojadas com raquetes de badminton. De disparar pedrinhas contra uvas morangueiras na velha espingarda de pressão de ar do meu pai. Nesses dias, engarrafei a minha infância. Posso bebê-la sempre que tenho sede dela. O aroma desses dias é igual àquele com que eu, o meu irmão e o Mário nos apresentávamos diante da minha avó, depois de horas e horas a fazer o que nos apetecia, como se nem Deus fosse capaz de saber de nós. Só a minha avó conhecia com milimétrica exactidão o lugar onde nos encontrar: na cave fresca da casa, com muros de pedra fria arrancada pelos braços do meu avô, do meu pai e dos meus tios às entranhas secretas da Serra. Um dia, naquele lugar, o meu avô terá dito:
– Abre-te, Sésamo! – e a Serra desviou as pedras onde se equilibraram as paredes que atravessam firmemente as vertigens do vale.
Os dias de férias na casa da minha avó terminavam cheios de um cansaço frenético e inocente. Eu, o meu irmão e o Mário cheirávamos aos limos dos tanques, a suor e a fumo. Se houvéssemos tido o azar de uma vespa nos ter atacado à ferroada, talvez pudéssemos cheirar também a um unguento de lama produzida com a nossa própria urina, que aplicávamos diligentemente na zona afectada.
A minha avó aquecia uma panela de água no lume, juntava-lhe uma porção incerta de água glacial ordenhada à fonte e enchia um balde cheio de pequenos orifícios no fundo, do tamanho de buracos de agulhas, que voltava a içar no tecto, depois de o arriar. Dentro de um alguidar, eu e o meu irmão puxávamos uma frágil corrente de aço inoxidável e fazíamos chover sobre nós. Infantes de Zeus. Pequenos deuses da chuva.
Lavados, continuávamos cheios de terra. À noite, em frente ao lume que nunca se apagava, a minha avó voltava a contar aquelas histórias que pareciam vir das profundezas da montanha.
Não me esqueci de si, avó. Lembro-me dessas histórias. Lembro-me dos naperões. Coloco-os sobre este texto como se ele fosse uma televisão onde vejo correr as imagens animadas da minha infância. A caneta que escreveu estas palavras tem a ponta incandescente. Agito-a aos ziguezagues na escuridão dos dias e é como se escrevesse numa tinta que há-de refulgir para sempre:
“Avó Júlia”.

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Farrapo

10/07/2013

Visto esta roupa velha
Cheia de amor aos buracos.
Poços sem fundo opacos,
Frestas rasgadas
Nas sombras da idade,
Texturas amarrotadas
De encontro à claridade
Em cada nova ilusão.
Traje de gala no festival
Da solidão,
A vida é a única que me vale
Quanto mais rompo o coração.