Archive for Março, 2013

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Sonho

28/03/2013

Na luz brilhando às rodelas
Soprava um vento Suão.
Eu podia estrelar a solidão
E ser inteiro às parcelas.
Os teus olhos eram janelas
Abertas ao calor da rua.
Olhando através delas
Eu era azul atrás da lua
E já não sabia se a vida
Era realmente vida
Ou a noite presumida
Entre a minha vida e a tua.

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Portugal

26/03/2013

O céu está cheio de pais
Que não são nossos
E na terra estão os ossos
Dos nossos ancestrais.
Destroços
E restos mortais
Feitos de mar e de granito,
Vagamundos entre nós e o mito,
Náufragos nos areais
Da História…nada mais.

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Lei dos rendimentos descrescentes

26/03/2013

Carradas e carradas de desespero a estalar por tudo o que é lado. E o mal é que não sei de onde me vem. Mas tudo tem o seu quê e a sua medida. Até este cotão crispado que se vai juntando aos poucos no fundo da consciência há-de reger-se por uma lei dos rendimentos decrescentes. O ponto a partir do qual, por maior que seja o pudor, a cobardia, o orgulho ou a vergonha, mantendo-se constante a dispersão do costume, esta aflição não passará de desabafos impessoais de um poeta sem voz.

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E se…

24/03/2013

E se o se não fosse o início
De uma condição?
E se o se fosse o solstício
De Inverno em pleno Verão?
E se o se fosse concreto
E não uma sílaba no escuro?
Fosse um mapa correcto
Onde se adivinha o futuro?
E se o se fosse céu sem tecto,
Ou mar sem ondas na areia,
Ou fosse o traço dum projecto
Vindo antes da ideia?
E se o se não fossem folhas
Escritas nas linhas dum diálogo
Sobre maturidade?
Se o se fossem escolhas
Feitas por catálogo
Ajustadas à idade?
E se os ses não fossem tantas ausências
De certeza em tudo o que se diz,
E fossem redondas circunferências
A pôr os pontos nos is?
E se o se fosse cambalhota que viramos
Cheios da dúvida a pairar?
Não fosse o modo rude em que aterramos,
Depois de tudo questionar.
Estar no mesmo ponto em que estamos,
Mas de pernas para o ar.

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Entre mim e os outros

21/03/2013

Lá revelei mais um dos meus mistérios. Foi involuntário, mas já está. Certas confissões feitas a cru são ampulhetas dissimétricas às quais não é possível virar a cambalhota.
– Force as costuras à camisa de forças! Lembre-se de que as flexões de cada verbo se iniciam a conjugar o sujeito eu. Ponha-se a si à frente e deixe os outros compartimentados no egoísmo lá deles. Além do mais, ninguém lhe dá louvores…
– Você diz isso, mas faz igual ou pior. Quantas vezes se põe a si em primeiro lugar?
– Muitas… Principalmente quando estou sozinho.

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Declaração

20/03/2013

Grito versos
Sem que possas ouvir-me.
Mas continuo a insistir
E grito! Grito até cair
Em terra firme.
Talvez seja melhor, enfim,
Ficar assim, distante de ti e de mim,
Neste silencioso alarido.
Só eu sei a angústia que seria
Dar às palavras mais sentido,
Mesmo que tivesse, um dia,
De dizer-te poemas ao ouvido.

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Toque a rebate

20/03/2013

Na simetria cronológica
Do rectângulo a ocidente
Tudo como antigamente.
No país da arraia-miúda
Nada muda.
Os filhos da revolução
Trabalham em vão
E pagam impostos.
Murchos e de olhos postos
Nos cravos do chão.

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Poesia erudita

19/03/2013

Não sei se é por insuficiência de inteligível ou se é por carência de sensível – até ponho como condição que seja por ambas – mas as vozes dramáticas de certos candidatos a poetas cantando versos nas praças virtuais não me comovem um migalho sequer. Convictos de que revelam os segredos do inefável, metem o dicionário no microondas, esperam meia dúzia de minutos, juntam-lhe corantes líricos e apresentam-nos, ainda a fumegar, versos requentados. Versos de cegueira branca a negar à própria poesia o seu dom essencial: o ritmo. Pound sabia-o bem: a poesia está tanto mais próxima da sua essência quanto mais próxima estiver da música. E a maioria destes trovadores não nos consegue dar mais que estrofes eruditas ensaiadas num chanfalho. Entre a erudição expatriada de sentido dos sábios dos mistérios órficos e a grafia desajeitada e expressiva dos poetas populares, é a lira marginal dos segundos mais me enche o coração. Têm as mãos besuntadas de terra e tocam de improviso.

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Prova dos nove

19/03/2013

Passo os dias a tirar provas dos nove à minha natureza. Crio mapas absolutos abstraído em coordenadas relativas. Vivo em excesso, sinto em excesso, penso em excesso, reajo em excesso, sonho em excesso, protesto em excesso, erro em excesso e sofro na mesma medida. A contrapartida é comer pouco, dormir pouco, ler pouco, transigir pouco, perder-me pouco, acomodar-me pouco, iludir-me pouco e conhecer-me pouco a descobrir nos outros o pouco que sei de mim. Para tapar os pudores da consciência, deixo a nu os safanões do instinto. A minha vida é uma balança indecisa bamboleando entre a tensão emotiva de dois mundos: se um dos braços desce aos abismos do sofrimento, já o outro sobe aos píncaros da esperança. Os equilíbrios são o lugar nenhum nos pratos de uma existência e a minha pesa-se no desterro caótico e maciço dos extremos. Os extremos inéditos da singularidade.

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Cronograma

17/03/2013

É bonita a corrida da Juventude,
Quando a única virtude
Que lhe reconhecemos
É essa eternidade fingida
De não saber que envelhecemos.
Só depois, à hora da partida,
Lhe damos a efémera medida.
Os caminhos são mais estreitos,
Os dias demasiado pequenos.
Nos corpos já não tão perfeitos,
O tempo é somado por menos.