Archive for Junho, 2012

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Palácio de Mafra

29/06/2012

Ver certos monumentos deste país lembra-me certas pessoas. Ermos de aparências fingidas, labirintos de caprichos exacerbados, reflexos de consciências apáticas, são púlpitos de grandeza em estilo rococó cinzelados pelo pico ufano da mesquinhez. Durante a visita, rodeado pelas trevas da luxúria, só as janelas me acenavam aos sentidos, abrindo o panorama ao verde espesso da tapada e ao pano azul do mar, onde o sol caía redondo numa nódoa fogosa de luz. Salvou-se a biblioteca com os seus livros fechados numa admirável pobreza franciscana. Gosto do palácio. Mas o melhor que resta de Portugal tenho eu perspetivado dos vãos das casas, no rosto castiço do povo ou nas páginas suadas pelos nossos homens e mulheres da pena. E em boa hora este exemplo saloio da megalomania pátria nos deu muito mais que histórias de fadas e incidentes secundários. Deu-nos o enredo sublime do génio de Saramago a fazer correntes de ar nos corredores do mamarracho.

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Aceno

26/06/2012

Olho os abismos de frente,

Dou o peito às violências do pudor.

E por muito soalheira e quente

Que seja essa vertente,

É de dentro que me vem todo o calor.

Faço das palavras serras concretas,

Arredondadas e escarpadas

Por sinuosas linhas retas

Nos olhos terrosos das enxadas

Às mãos polidas dos poetas.

Que se arrasem altares e paraísos

Nos planos juízos

Do dia a dia.

E responda eu com sorrisos

A qualquer vale fundo que me sorria,

Com uma sede de sorrisos

Que nenhum sorriso do mundo sacia.

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Férias

24/06/2012

Meia Praia, Lagos. Começou o verão. Daqui a pouco, Portugal vai estar de férias, de toalha estendida sobre este fino açúcar mascavado caramelizado pelo lume tépido do sol, à espera que ondas sonâmbulas lhe iludam os sentidos. Eu, que sou a amargura em carne e osso, acho isto alegre e belo. Momentaneamente, lavado na sombra ociosa de um chapéu de sol, deito-me no areal do esquecimento e faço gazeta, também. Deixo-me levar pela volúpia das ondas e tiro férias de mim.

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Gripe

19/06/2012

Cheguei a casa e vim logo pôr-me de molho, a curtir uma gripe. Descoroçoado, engalinhado, a arder no fel de uma febre alanceada com olhos de carneiro mal morto, ratado por dores nas dobradiças do tronco, o nariz numa torneira pingada, fecho todas as janelas à essencialidade das coisas. E qualquer verbo me parece rachão a encher a cabeça de delírios. Os únicos horizontes que me entram pelos sentidos adentro são os estremecimentos sísmicos a latejar-me nos dentes. Agora, a única geografia e palavras possíveis são as da anormalidade patética e transitória do meu próprio corpo.

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Rocha Negra

18/06/2012

A Rocha Negra é uma das mais belas tragédias telúricas de onde se pode contemplar o buliçoso litoral algarvio. Vista do sul, a apascentar rebanhos de carneiros num agitado e viçoso pasto salgado e cor de esmeralda, emproada na sua dureza fuliginosa, parece sabiamente separada da desoladora paisagem urbana circundante. Vestígio inapagável de vulcanismo na região, estéril, inefável e agressiva, as ondas não lhe aleijam os pés, o sal não lhe abre gretas na tez parda, as brisas nebulosas não lhe ofuscam as vistas e o homem não lhe alcança a verdadeira grandeza do âmago senão a partir mar, embarcado numa casca de noz. Nos mais de 70 milhões de anos da sua existência geológica, e nos 200 mil de homo sapiens, nenhum dos Judas que venderam cada pedaço de praia ao mafarrico, deitando as sementes do cimento armado no chão das figueiras que mandaram cortar para não pendurarem, depois, os remorsos da traição à terra, lhe concedeu a honra devida. Ou a louvá-la, cantando-lhe loas, ou, à falta de figueiras, a beatificá-la, atirando-se dos píncaros deste ermo e a estatelar-se no fundo do abismo.

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Dois gumes

16/06/2012

Não há maneira de pôr cobro à  selva hostil e confrangedora que me separa dos outros. Nos gestos e nas palavras, sou uma catana de dois gumes inteiriços. Esquecido das insanáveis cicatrizes desta realidade, passo o tempo a arremessar-me, na vã tentativa de  abrir clareiras conciliadoras e a traçar lanhos insofridos nas mãos.

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Devaneio

15/06/2012

Senta-te na areia, não te escondas.

Ouve o mar sair da sua poça

E enrolar-se em música que adoça

A espuma sinfónica das ondas.

 

Fantasia!

Sonhar é ir cego à meta

Da aventura…

Teimar na ilusão secreta

De voar mais alto que a altura.

 

Abre as asas do pensamento.

Olha que o vento

Sopra sem fim.

Tens as molas da imaginação

E no sol a impulsão

A saltar num trampolim.

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Assinatura

13/06/2012

Guardo para ti o melhor poema.

E fica a saber que o tema

Não é os restos

Mortais que agora lês

Nem o movimento dos gestos

Reflectidos na beleza dos olhos com que os vês.

Fica a saber que não é isto

Nem aquilo que tens visto

Noutros versos desajeitados

Guardados

Na estante do silêncio.

Não são os brados

Roucos e doridos

Cantados numa letra que desafina.

Hão-de ser beijos desmedidos

Saídos

Da mão que os assina.

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Serra

12/06/2012

O dia foi uma faina venturosa, à desgarrada das pernas e da imaginação, a mostrar a um antigo camarada de academia os escaninhos ocultos desta minha Serra. Uma radiografia diáfana ao cenário montanhês monchiquense, palco insensível de inúmeras tragédias humanas cuja grandeza fatídica nenhuma biografia coscuvilhou. Miradouros familiares e sobranceiros, as paredes violentas levantadas pelo suor verdadeiro da erosão no Barranco do Demo, o Castro do Alferce no pranto pedregoso da sua solidão, as águas santas a chalrar nas nascentes da Fornalha e da Malhada Quente. Altares sacramentais galgados à sobreposse, na legitima ufania de quem os vê pela primeira vez e deles se despede misticamente, como se estivesse a receber a bênção da extrema unção.

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Bilhete de Identidade

07/06/2012

É escusado. Por muito longe que estiquemos os elásticos dos nossos esforços, o sol crepuscular da boa consciência acaba por fazer de nós próprios sombras maiores que a altura verdadeira das nossas almas. Bem posso dar-me nu e em corpo inteiro na forja destas notas, nos contos e nos versos que vou garatujando. Nunca sou aquilo que as minhas palavras escrevem. Sou os rabos-leva das solfas rabiscadas que os outros me engastaram com fita cola e palmadas suaves nas costas, nos momentos em que, empenhadamente, tento cumprir-me na empresa da vida. Tenho tantos bilhetes de identidade quantos aqueles a quem o trato quotidiano e íntimo outorgou a pretensiosa legitimidade de os emitir. É. Nascemos, vivemos e morremos sem que ninguém nos conheça em toda a transparência. Creio que isto é que é a angústia da solidão. Só nos tornamos verdadeiramente santos nas horas pesarosas que sucedem as últimas pancadas do motor da existência. Depois, ressuscitamos conforme as escrituras infernizadas que os espectadores  da tragédia vivencial fizeram de nós e voltamos à dura condição esquecediça de humanos. Com uma diferença, apenas. A irremediável diferença de estarmos eternamente mortos.