Posts Tagged ‘Jornal de Monchique’

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Natal

25/12/2011

É uma história de Inverno:

Chovia.

O Menino, embrulhado em frio e calor materno

A muito custo

Adormecia.

O rei, que era injusto,

invejoso e sofria,

Mandou calar o choramingar

Que a noite ouvia.

Cega, a espada vingadora

Correu casas e ruelas,

Arrombou portas e janelas

Sem ver no curral a manjedoura.

A salvo do tirano,

Glorificou-se o Menino

E tornou-se mais humano

O frio desse Natal Divino.

 

Na edição natalícia do Jornal de Monchique, há um conto sobre um Natal terroso e concreto, onde o poder humano é tão gregário e tão essencial que parece milagre o calor doce que irradia das criaturas que o habitam.

 

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Lázaro I

02/11/2011

Lá vou lavrando a minha prosa, lapidando palavras, na íntima certeza de que cada frase construída é um muro escarpado só tornado transponível após horas e horas de arremesso laborioso da picareta contra a rijeza desprendada do talento. E fico à espera, cheio da mesma paciência. À espera que uma só revelação dos sentidos possa surpreender até o mais intransigente dos carrascos de tudo aquilo que digo, escrevo e faço: eu.

 

Eis a minha habitual crónica no Jornal de Monchique.

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Largo dos Chorões

03/02/2011

Hoje, na Biblioteca Municipal Silva Carriço, em Monchique, uma senhora lia, de alma aberta, a minha habitual crónica no Jornal de Monchique, cuja narrativa se aglomerava torrencialmente nos irrequietos e irreverentes «Marosquinhas». (Sim, os maraus voltaram a fazer das suas no Largo que é o centro do Mundo monchiquense.)

Quando acabou de ler, tocou-me ao de leve no ombro, apontou para as minhas palavras tisnadas no jornal, perguntando se era eu o autor do texto. Sorri, envergonhei-me, disse sim e quis fugir. Replicou a timidez do meu sorriso e disse que gostava muito de ler as minhas crónicas. Sem hipótese de me dissolver na fria solidão dos muitos livros que nos cercavam, acabei por ser eu a agradecer-lhe, humildemente, com versos tão parvos e tão espontâneos:

«-É bom saber que alguém lê com prazer um gosto que me faz doer, este que é escrever». 

A crónica segue aqui.

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Zé Constâncio

07/09/2010

Na minha habitual crónica do Jornal de Monchique, palavras lavradas com o arado da ternura para quem nunca as poderia ter lido, a não ser com os ouvidos: o meu avô materno. Por esta mão sou transportado a um tempo em que, na minha terra, em tempos não muito longínquos, homens e bovinos se enxertavam de vida uns nos outros, numa comunhão de destinos quase simbiótica. Numa vila instruída a valores de honra superior, a tourada agendada para o próximo fim-de-semana é a expressão sincera do desenraizamento da nossa identidade cultural e de retrocesso de humanidade, ética e moral.

                                                                                    

Abençoada de fartura de tudo quanto a Natureza lhe dispôs, Monchique é um versículo decantado do Pentateuco . A Fóia e a Picota, como duas mãos de pedra retalhada, erguem-se humildemente numa oração sepulcral de penitência aos céus e, no tumescido chão, talhadas ora no sienito ora no xisto, cumprem-se as Sagradas Escrituras: a Aliança de Deus com o homem, e este, na sua índole refractária, a pecar deslumbrado com a promessa de uma nova aliança; a Terra Prometida em matas de eucaliptos, arrobas de cortiça e duas ou três quadras de batatas, ou mais, conforme as posses de cada um; e a perenidade do Povo rasgando o caminho poeirento do destino a picareta. A gestão disso é quanto basta aos poderes de um Deus só.

E quem vê a talha dourada das molduras deste quadro não cuida que a vida dos últimos Patriarcas desta Serra, convertidos em profetas do mistério da fé na vida harmoniosa entre todos os seres da Terra, foi uma missa desprovida dos mais sagrados dogmas e rituais.

Como o Zé Constâncio, por exemplo, nunca houve, neste amontoado de cerros sáfaros, igual a ele. Era o reverberar da dureza do solo casto em que as suas raízes se firmavam, embebedadas da mais vital e subtil seiva a escoar nas gargantas e nos barrancos. Libava-lhes, com os tojos e as rosas albardeiras, a justificação que o enrijecia e agigantava numa luminosidade de espírito reconhecida por todos quantos lhe requisitavam os serviços voluptuosos do Cravinho, um cobridor da cor do barro, de graves mugidos, a quem a filiação herdava impreterivelmente as hastes amoladas na ponta, o porte severo, robusto, espartano, e o tique de escarvar afanosamente o lajedo com os canelos de trás. Bezerro que lhe descendesse não sucumbia ao atrito pesado da relha a trincar o fundo às penedias. Às vitelas por ele geradas nunca secavam as tetas.

Jungidos pela canga do destino, o Zé Constâncio e o Cravinho foram palmilhando os carreiros alcatifados da boa fama como as veredas que ambos percorreram semeando o milagre da vida pelos estábulos da Serra. E já eram poucos os que não tinham ouvido falar da linhagem do Cravinho e não espalhassem as façanhas perfeitas do prolongamento da sua existência noutras terras, noutros mercados e noutras feiras, ao ponto de nem a almudes de aguardente, nem a courelas, nem a dinheiro se conseguir demover o Zé Constâncio da sua maior fortuna. Vinha gente de fora, disposta a pagar uma dinheirama, e nada. Veio numa feira o Pedrosa, um latifundiário encacheirado do Cartaxo, possuidor de uma ganadaria de estremas ruminadas no horizonte apascentado por sol, lua e gado dia e noite, de carteira engordada a notas insurrectas a rasgar-lhe os pespontos da camisa, e foi isto, na parcela destinada ao comércio de gado:

– É você que é o Zé Constâncio?!

– Assim o disseram os meus pais, padrinhos e o padre que me ungiu diante da pia baptismal. Deus os tenha em boa conserva… E a si, também… – respondeu, desenvoltamente, com um sorriso ágil que parecia sair-lhe da boina que desenterrara na solenidade do cumprimento desconhecido.

– Diz que tem aí um cobridor que é um primor. Comprovei-lhe o crédito das façanhas nos bisnetos e trisnetos que já lá chegaram ao Cartaxo. Tem fibra para a procriação, o bicho!

– Lá isso… Dispensa apontador e quase nem é preciso picar durante a lavra… – atalhou o de Monchique com o mesmo sorriso límpido com que vaiou inicialmente o ganadeiro.

– A como o vende? – albardou o outro à vontade, atirando secamente a mão de encontro à saliência das notas inchadas no bolso da camisa estriada.

– O Cravinho não se vende, meu amigo. É quase família, percebe? É o motor da vida que a mim já me vai faltando. Se o vendesse, éramos dois desgraçados… Compreende? Nem por essas notas, nem por uma camioneta delas. Se o quiser para procriação é levar lá ao monte a vitela que a coisa faz-se. Essas primaveras da vida não tenho eu o poder divino de negá-las, nem à bicheza.

Ao cabo de um mês, o Pedrosa, de botas de cano alto, chapéu de abas largas e a mesma camisa a estoirar de dinheiro no bolso, voltou, com a vaca que haveria de ser a mãe dos enésimos filhos do Cravinho. Encostou-se ao muro de pedra musgosa, com a cara escondida no jornal que fingia ler por pudor ao momento. Um passo à frente, de mãos confiadas aos quadris, o Zé Constâncio incentivava o bovino:

– Eh Cravinho… vai-te a ela… Eh shhhh, vai-te a ela…

Uma hora passada e nada, ainda. De cadeiras derreadas pelo inusitado peso na espinha e com o cachaço coberto do monco cansado que escorria do focinho largo do charolês, a vaca soltava mugidos lancinantes de impaciência que abafavam a perseverança dos encorajamentos do Zé Constâncio. O fósforo riscava o rego do servidoiro e desviava-se do caminho, sem maneira de se acender dentro do forno íntimo e fecundo da vaca.

– Enganaram-me bem enganado “sôr” Zé! O boi nem sequer sabe o caminho e a vaca está nas últimas. O melhor é dar o serviço aos toiros do Cartaxo! Assim não vai lá, não!

Ao motejo protestante do Pedrosa, o Constâncio, com as costas do antebraço limpando pensativamente a testa orvalhada de pingos de suor comprometido, tomou a decisão de mostrar que em frente do curro é que o toiro se vê. Num gesto tão brusco quanto puro e espontâneo, surripiou o jornal às mãos vagas do Pedrosa, embrulhou-o no gume inteiriçado do charolês, e, apontando-o às partes da vaca, disse, resoluto:

– Ah vai, vai… Vai e até vai lendo!

Parvo e ligeiramente assustado ainda, o Pedrosa fitava o milagre consumado, boquiaberto. Aterrou-lhe novamente a voz abrutalhada do Zé Constâncio, como uma juncada que o acordou da hipnose:

– Eh “sôr” Pedrosa, aqui já não valemos para nada. Vamos andando para cima que, nestas coisas da intimidade da criação, o melhor é deixar correr!

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[H]à tourada

31/08/2010

Um exílio na Natureza em carne viva e, de volta ao aconchego maternal das dobras do xaile da rocha-mãe, isto. Pegas de cernelha à mancheia, apregoadas a cornetim e com cornaduras de varar as entranhas da alma, sempre as houve aqui neste lugar de sienito e xisto tumescidos numa oração sepulcral de penitência aos céus. A mulher do senhor X e o marido da dona Y que desfraldem a ira reprimida nos rubescentes capotes e as contem na primeira pessoa, se quiserem. 

Antes deste tempo de hoje, que sem conhecer os mistérios da puberdade é já um velho, serôdio, lacaio, corcovado sobre si próprio, olhando as unhas dos pés gastos, atafulhados no sarro, Monchique foi o presépio do Mundo, a manjedoura onde o Menino redentor mamou da Mãe o primeiro leite, enrolado na palha renegada do berço e aquecido pelo hálito da vaca no morno sacrifício da existência humana. E quem, seguindo a estrela da miséria, assistia humildemente a este milagre, via uma missa desprovida dos mais sagrados dogmas e rituais, convertido em profeta do mistério da fé na vida harmoniosa entre todos os seres da Terra.

Contou-me há tempos, alguém despido da suspeição dos laços familiares, que um dos meus avôs, que melhor que eu o conheceram os sobreiros e os cálices de aguardente, foi testemunha do milagre, tal qual vem nos Evangelhos. Boi de canga de outros homens como os outros de cornos e mugidos, criador de gado a quem a fortuna só o cobriu de sofrimento, possuía no estábulo o cobridor mais apurado. Não havia na Serra novilho ou vitela que não o tivesse na linhagem.

O resto desta história de honradez e grandiosidade superior, em que os homens da minha terra e o gado bovino se fizeram cúmplices na mesma manada da criação sem o ferrete tolo das pífias lides  de ferro, capotes e bandarilhas, pode ser visto muito brevemente, na minha próxima crónica, no Jornal de Monchique.

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Doutores da mula ruça

07/07/2010

Setembro na molura. A Serra como um borralho, ajoujada ao sopro de lume afiado que ferve nos dias infinitamente quentes do estio, espreguiça-se em lânguidos bocejos verdes. E logo adormece num restolho vago de vida. Debaixo da sombra pesarosa e desluzida que jorra das tileiras raquíticas do largo, varridos como as folhas secas mastigadas pelo vento a enrodilhar-se em acanhadas refegas contra os pés, juntam-se os doutores da mula ruça.

É à tardinha, à hora em que os doutores da mula ruça lembram o tempo em que eram homens. A hora em que eram homens em busca de uma nesga de afirmação superlativa, enterrados no húmus fecundo dos outeiros, a regressar da jornada, estiolados. Mãos e lombos invisíveis de outros homens que lhes esqueceram a vontade em troco de um nada de fome enganado, condenados desde cedo a ler o Mundo com o olho laborioso da enxada, os doutores da mula ruça recostam-se, silenciosamente, nos bancos achavascados do largo. E escutam.

Aos poucos, aquele lugar é um rio assoreado de velhos com as orelhas desfraldadas às histórias da senhora dona Joaninha Rita. Da janela grande do pequeno quarto, nivelada um metro acima da soleira do largo, ouve-se a voz da mulher, alta, mole e resfolegada, deletreando pedaços de livros e alfarrábios, alheia ao encantamento fulgurado nos olhos das testemunhas prostradas no lado de fora da casa deserta de outra gente que não ela.

Calados, sob a sombra sisuda do largo, os doutores da mula ruça ouvem pensativamente a senhora dona Joaninha Rita enquanto fumam onças de tabaco feroz. Afincados ao de leve entre os lábios secos, os cigarros ardem vagarosamente em zorreiras de fumo que se desvanecem como os finais de tarde e de céu alaranjados. As tardinhas são pedaços de dias a desaguar num abismo de breu picado de estrelas cuja aragem, morna e com míngua de luar, é incapaz de trespassar as frinchas da janela já fechada. No escuro da rua, só com a luzinha palpitante das piriscas a esclarecer-lhes o caminho, os doutores da mula ruça dispersam-se e tornam à lassidão solitária dos lares, de alma cheia e barriga vazia. Voltam amanhã, à hora dos homens. O Vicente, que mora a uma lonjura de três jardas, abala num carro de praça.

Tornam a voltar amanhã, mas a janela do quarto permanece fechada. Quando a senhora dona Joaninha Rita fica deitada, por mor da dor ciática, o Vicente desenterra a melódica do bornal e os doutores da mula ruça começam a trautear modulações antigas, do tempo em que eram homens, polinizando a ternura afogueada do ar com elegância, como se a cantoria rebentasse por entre os grãos desgrenhados da terra preta nos valados, escorresse docemente pelas encostas frescas da Serra e desabrochasse finalmente no largo.

Menina dá-me um beijo não sou rapaz mau / sou aprendiz de ferreiro com espeto de pau… lailailalailalau / Beijo desta minha boca não sai / queres casar comigo pede-me a meu pai / lailailalailalarailarau.

Meneando-se por entre os poros das paredes toscas de cal, dissimulada numa retribuição milagrosa pelas horas de leitura, a solfejação da melódica embalsamava o tabernáculo e aturdia o nervo ciático da senhora dona Joaninha Rita num sono desperto que a deixava a levitar, farta de paz. O compasso surdo dos lábios secos e sulcados, expirando lentamente, acompanhava então o cândido trinado vindo do largo, até se lhe alijar a dor.

Às vezes, acercava-se dos doutores da mula ruça o homem que, de uma vez só, os levara à investidura inexorável da pia baptismal. O Pouca-Telha, o regateiro. Uma tarde, por vingança, pirraça ou serrazina, mete a máquina de sulfatar às costas, e toca a pulverizar a vil calda bordalesa pelas ruas da vila.

– Aquela moita de carquejas serôdias, como burros, apeados no largo, uns dias especados a ouvir as leituras da senhora dona Joaninha Rita, outros a zangarrear e a falar sobre o outro tempo, são os doutores da mula ruça. – pregava, rançoso, em ufanos balidos, renovados entre sorrisinhos retraçados de escorbuto.

Os doutores da mula ruça, que à nascença também não tinham sido consultados sobre a pertinência dos próprios nomes, amassados pelas chicotadas flamejantes que o sol lhes trespassara impiedosamente nas carnes ossudas da alombadura durante os anos da criação, estavam-se marimbando para os epítetos que o pó e cinzas da velhice agora lhes traziam. E ouviam as leituras da senhora dona Joaninha Rita, e cantavam a suas melodias, com a cadência embevecida de sempre.

Aposentado das Finanças muito antes do momento em que o corpo pede a trégua alodial, o Arlindo Pouca-Telha era uma figurilha pitoresca a quem o pino do sol aplainava um brilho gorduroso na penugenta careca. Minou-lhe um caruncho indominável de cólera abespinhada aos doutores da mula ruça o dia em que o Joaquim latoeiro, o Vicente, o Aduela e o Toino golpelha, valendo-se da prosa de um conto escrito por um famoso escritor da vila, derramada no largo pela boca da senhora dona Joaninha Rita, manhosamente o convenceram de que na fonte do largo da feira gorgolhava, pastosa, uma água preta que, não matando a sede, havia de ajudar a matar a fome.

– Diz que até o Presidente da República quer vir aí e tudo…

– É?

– Olarila!

Assomava-se-lhe aquilo como uma fraga virgem com cio de cava. O acontecimento trazia a oportunidade de dar a conhecer o seu génio amordaçado. Se não era doutor nem engenheiro de formação, haveria de agarrar o solteiro ensejo de vir a ser alardeado como artista. Fosse como fosse, não perdia nada em escrever um texto para o jornal, entoando um panegírico “à milagrosa descoberta que desencravaria a Serra da hibernação apática de largos anos”. E, com estas palavras, deixou os doutores da mula ruça deleitados nos bancos duros do largo.

Sem tampouco ver para crer na pureza do negrume a brotar da bica no largo da feira, a composição estampada no papel, três vezes revista e expedida, quando o Pouca-Telha sentiu o aperto do laço que os doutores da mula ruça lhe haviam armado, já o director do jornal rebentava em gargalhadas estrepitosas na redacção. 

E, se o Aduela, ao mesmo tempo que a lâmina extenuada da navalha empurra a porcaria debaixo das unhas, se atreve a perguntar para quando sai o texto, o Pouca-Telha espreme-se todo num mar encapelado de pragas e desculpas esfarrapadas.

Foi isto muito antes da senhora dona Joaninha Rita se exilar no lar da Misericórdia e de o Vicente ter sido varado por uma trombose que o deixou de boca ao lado e sem mando nos braços. Hoje, um vento desgraçado penteia os eucaliptais que rodeiam a vila e o largo envolve-se numa solidão de morte, envergonhado. Só ainda lá está o Pouca-Telha, a espiolhar, de braço dado a uma sombra gorda e baça de pernilongo, quem sabe se à procura de petróleo.

                                         

No país dos doutores e engenheiros, avaras palavras àqueles a quem a escola pública nunca chegou, nem sequer com um aceno. Os doutores da mula ruça estão na minha usual crónica do Jornal de Monchique.

A origem da expressão «doutores da mula ruça», detalhadamente explicada aqui, neste blogue amigo.

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Letes

31/05/2010

[Estige, Aqueronte, Cocito, Flegetone e Letes, são os rios que sulcam as paisagens flamejantes do Inferno. Banhando as margens lancinantes onde se amontoam os espíritos, as áridas águas paradas a crepitar no leito saciam a amargura sequiosa do passado e lavam a alma num profundo esquecimento. O Letes e quem dele emborcou uma golada imémore, no casculho habitual de que é feita a minha crónica no Jornal de Monchique.

Tratando-se do arranjo de um esboço de história já conhecida dos mais vetustos seguidores do blogue, volto a partilhá-la aqui mesmo, na terra escalavrada em que foi semeado, livre dos pudicos químicos de síntese a que a publicação num jornal respeitoso deve obedecer:]

Ao dobrar a curva do tanque do povo, o sentido faminto da matilha de rafeiros tresmalhados e ensopados com que se cruzava sem se dar conta, parecia muito mais obstinado que o da sua própria vida. Trôpego, com retumbantes passadas que faziam reflexo nas paredes estranguladas da azinhaga, de colher e talocha nas mãos, despontou no portaló da venda como uma quimera macilenta. Reprimido pela mão forte e temulenta da Gravidade, era-lhe difícil retesar-se. Ergueu-se frouxamente, ao mesmo tempo que a voz tão pesada como as pálpebras inertes por debaixo do boné atafulhado até metade das minúsculas orelhas se arrastou num azedume de berros taciturnos:

– Não me toquem, não me toquem! Que ninguém me toque! Faz favor…que ninguém me toque!

De imediato, abeirou-se dele o empregado. Compadecido, contestou:

– Olha o Juquinha, está de mal com o mundo, amigo? – Ainda mal as palavras do empregado lhe marulhavam nas profundezas do canal auditivo e o Juca larião, que tinha uma voz rouca, de arrã, já remoqueava de volta:

– O meu irmão…tenho aqui uma coisa boa para ele: Um par de peras. Hoje dou-lhe um par de peras…madurinhas…boas! Um parzinho de peras na focinheira! Levo eu a mourejar, alombo a carregar o mundo pedra a pedra… A minha mãe desunha-se e o lorde mama-nos tudo. E que o mandrião nos roube, que o sacripanta não queira trabalhar, não faz mal. Ainda forro algum para tabaco e cerveja. Agora, dar porrada à minha mãe por não lhe querer pagar os vícios?! Descambou ao ponto de prometer-lhe mais uma parelha de cacetadas amanhã… Nem pensar! Duas peras dou-lhas eu hoje. É pôr os pezinhos em casa! Eu bem tenho andado aí à procura dele pela vila. Corri seca e meca e olivares de Santarém…

Ódio e amor eram azeite e águas-ruças brotando diluídos nas profundezas confusas das emoções diluvianas em que se afogava. Na geografia do monólogo de Juca não existia nem raia nem guarda a apartá-los. Falava de um e de outro como se fossem um só, uno e indivisível.

– E hoje estive com a minha garina. Fizemos as pazes esta tarde. – Dizia e esfregava as mãos como se nelas polisse o sentimento que as vestia e deitava uma risada marota.

Na mesa ao lado, dois rapazes assistiam a tudo, inebriados. Acamaradou-se com eles e falou-lhes do leito amoroso, da discussão com a garina, dos golpes de charme que a faziam babar por ele, das melosas juras de amor eterno, do pino e outras manobras de corpo que tinha conseguido exibir durante a tarde, justamente para a impressionar. Convincente, tagarelava sobre a felicidade que lhe percorria o corpo, desde a alma até aos ossos, gesticulando com os dedos amarelecidos pelo tabaco, até se lhe abafarem as palavras numa capa de escuma esbranquiçada aos cantos da boca.

E não fora o Pouca-Telha, que do balcão examinava aquela descrição abocanhando cervejas que ingurgitava de enfiada, a decidir-se a contar a profunda sesta ébria do Juca larião por sobre uma das mesas da esplanada do café do largo, durante toda a tarde, e todos teriam sido persuadidos de que, apesar das contas a ajustar com o irmão, estava realmente feliz. Foi, pois, um pormenor, uma triste minudência a estragar tudo. Felizmente, não foi dita a tempo de envergonhar quem quer que fosse por já lá não estar o Juca larião, novamente relutante em tornar a casa e cumprir a promessa de entregar o «par de peras» ao irmão.

Pela Serpa Pinto, tornou a dar de chofre com a matilha de cães vadios escarafunchando um contentor de lixo tolhido pela enfartada ventania. Uma malha de poças enegrecidas entristeciam a rua e tornavam ainda mais lúgubre a figura de Juca larião, bamboleando às tabelas nas paredes escorregadias, furtando-se por entre os fios irritantes da chuvinha insípida que pouco ou nada o molhava.

Bambeavam-lhe as pernas quando, já à porta de casa, arfava pestilentas baforadas azulinas que ofuscavam o vidro do postigo. Ao cabo de uma dúzia de mocadas contínuas que fizeram estremecer de medo a porta musgosa, a figura do irmão apareceu do outro lado, de olhos semicerrados por um sono narcotizado. Começava a porta a entreabrir-se e o larião, num assomo de Sansão, já a empurrava contra o outro, atravancando-o junto à parede. Com as duas manápulas acopladas ao gargalo do irmão, Juca aproximou-lhe o bafo silencioso e tépido e fitou-o nos olhos lancinantes. O outro acovardava-se, impando à medida que as forças se lhe sumiam concentradas nas palmas das mãos de Juca. Enfraquecido pela incontornável pena fraternal, com a sua vozinha de arrã, o larião coaxou finalmente:

– Um par de cachaporras nos queixos e passavam-te as manias… Sabes que mais?!  Cago-me em cabrões que amanhã chove merda! Amaldiçoado sejas! – Largou-o, esmorecido, e foi escanchar-se na cama, sem sequer tirar a roupa, apenas as botas e o boné, deixando o cabelo num molho de tojo acamado.

Acordou, estremunhado, não era ainda madrugada, com os ouvidos perfurados pelo barulho das goteiras que batucavam ferrugentas numa lata de tinta velha. Ao lado, o irmão roncava. A boca sabia-lhe a podre e um ligeiro azamboamento tolhia-o pulsando em pontadas ritmadas compassadamente na cabeça. Ergueu-se, enfiou as botas gastas e cansadas. Atafulhou o boné, e foi à labuta.

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Senhor dos Passos

03/04/2010

Corria o tempo da miséria. Março ia já na aurora e a terra permanecia desmaiada naquela lenta e tenebrosa maceração. Encourado numa película delgada, partida em pequenos ladrilhos de arestas arrepiadas de secura, desde o equinócio de Outono que o chão desesperado da Serra vinha mendigando água ao cerúleo macambúzio do firmamento.

A ribeira, numa quietude prestidigitadora, transformara-se num fino fio de água estornando-se pachorrentamente por entre os seixinhos rolados, até que a habitual rouquidão das mós perras se calou, escalavrando a alma ao cerro do moinho do Xico Manchinha.

– Mata-se o porco! – atroou o moleiro, no silêncio penumbroso e recolhido do caldo de papas moiras onde a insularidade de um osso destoando no mar de água turva da panela de cobre enlambujava de cobiça a mulher e os três filhos sentados à mesa.

Que estava maluco, acudiu a mulher prontamente. Na altura de vender os presuntos que acabavam de curtir na salmoura é que se punha com ideias. De mais a mais, o que diria o senhor padre Herculano quando, a meio do jejum da Quaresma, lhe batesse à porta com os lagartinhos do lombo tumulados entre dois alguidares de barro. Morria de vergonha. Não, perante uma cavilação sacripanta daquelas, não haveria água que os lavasse a ambos.

– Espera até ao Domingo de Passos. Pode ser que mal mexam no Nosso Senhor… – completou, com os queixos hesitantes, tentando demover pela fé a vontade terrena do marido.

O Xico Manchinha, que era um castanheiro de raízes azougadas, presas à dureza profunda e humana da rocha-mãe, respondeu, numa rudeza azoada:

– Era só o que faltava! Estar à espera de milagres e as mós paradas, o cereal por rilhar, açaimado nas sacas, e os moços pequenos ganindo com fome à roda da gente! Milagres, mulher, são as nossas mãos que os fazem – tartamudeou por fim, arreganhando rijamente as mãos empoeiradas de farinha.

Prostrado, o filho mais velho do moleiro tinha diante de si uma revelação que lhe tolhia a alacridade de menino: A água que passara chalrando pelo rodízio esmorecia num fio cristalino de esperança soterrada no cascalho inerte e, com ela, o sonho de passar com distinção no exame da quarta classe. No vale enviusado da ribeira corria o tempo da miséria, e, também ele, teria de ajudar a vencê-lo esgrimindo sacrifícios.

– Os números e as letras são sempre os mesmos. A tabuada e as redacções podem esperar, Carlinhos – ciciou-lhe num tom grave a voz compadecida do pai, afagando-lhe a mão rija na cabeleira lisa e preta, escorrendo-lhe pelas orelhas abaixo.

O picão da indigência matriculava-o na escola da vida. Bastaram as primeiras três semanas de jorna, cerro acima cerro abaixo, carregando feixes de lenha seca, rachando cepas ou acompanhando as vacas na sua existência transumante, para que um entristecimento maciço se lhe apoderasse dos gestos e feições. As pálpebras iam pesando como barrotes de azinho, a carne mirrava-se nos queixos e encaixava-se nos sulcos fundos das costelas. Tolhido por um assomo flamejante de febre e calafrios, ardia em delírios desgostosos na modorra da cama.

Feita a experimentação, a mulher do moleiro valia-se duma certeza metafísica. Mal se tocaram na pelangana, azeite e água misturaram-se na densidade amorfa de um só fluído: mau-olhado. Junto ao leito febril do filho, siderado pela inquietante resignação das mós paradas do moinho, Xico Manchinha lamentava-se da justiça salomónica que se lhe abatia:

– O mau-olhado fomos nós que lho pregámos, mulher… um céu aberto a trabalhar que nem um burro…- e o garrote ataganhado da culpa desarmava-o de mais palavras.

Elisa Manchinha, padecia da mesma tormenta e alinhava na culpa do moleiro. Envolta no desespero instintivo de mãe e na lealdade declarada de esposa, brandiu num rogo de preces ao Senhor dos Passos. Por chuva e pelas melhoras do Carlinhos. Acendeu uma vela, prometeu e esperou pelo dia da paga rezando salve-rainhas desesperadas. As folhas ramalhavam lá fora. Murmúrios ventosos abafavam-lhe as súplicas .

Veio, finalmente, a procissão do Domingo de Passos e o Carlinhos Manchinha, paliado pelas mezinhas de aguardente e mel, arrastava o corpo escanzelado pelas pedras da rua, adivinhando o caminho ao andor. Trazia os lábios rebentados pelas terçãs e as mãos chagadas pelas mordidelas do trabalho. Enfarpelado no manto púrpura e na coroa de verga em cima do cabelo escorrido, alombando de empréstimo as ripas cruzadas onde o espantalho pontificava na solitária tarefa de espantar os gaios agoirentos nos cômoros das ervilhas, as Endoenças ganhavam vida nas batidas esmarridas do seu pobre coração. Mesmo ao lado, atrás da irmandade da Misericórdia, a filha do médico, vestida de anjo, caminhando em passinhos almofadados, os olhos índigos e a pele lampejante, trazia nas mãos um ramo embaralhado de jarros e hortênsias fluorescentes. Fitou-a de soslaio. Pagaria também uma promessa, ou seria apenas ostentação beata encomendada pelas tias? Que importava isso, agora? Ali, debaixo do olhar sofrido e absorto do Divino Mestre ajoelhado no andor, eram todos iguais.

Soprava uma névoa. De passo estugado, a procissão subia agora a Rua do Porto Fundo. Coçando as barrigas opadas nos bicos dos cerros, um rebanho de nuvens em forma de bigorna engalfinhou-se na atmosfera e tomou-a pela cor do aço, até que um facho ramificado de luz ribombou por entre a multidão, rasgando a secura do horizonte. Já no adro da igreja, quando o Padre Herculano berrava o Sermão do Encontro, os céus desataram a debulhar as primeiras bagadas de água. No leito esterilizado da ribeira, as mós escorregavam, ásperas, novamente. A Vila inteira cheirava a terra molhada. Corria o tempo da miséria.

(No Jornal de Monchique.)

Moinho do Poucochinho, Barranco dos Pisões, Monchique. A imagem foi retirada do primoroso acervo do Parente da Refóias.

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Pedras Queimadas

04/03/2010

Segue a minha crónica, habitualmente ignóbil, habitualmente indecorosa, no Jornal de Monchique

Na fundura do barranco do Demo não há mal que dure sempre, nem bem que não se acabe. A crueza de ambos funde os anos em duas estações só. No Verão, vem a torreira do Suão e logo sobreiras e mato se põem vestidos de uma lava viva de labaredas incandescentes barbeando os cerros numa fome insaciável a que nem as pedras escapam, ardendo também, numa tristeza fúnebre. Salva-se a courela do milho, verde no meio da paisagem lutuosa. Depois, vem a Invernia e o tempo fica voltado para o lado do pego. Os aguaceiros são fios-de-prumo ligando céus e terra, o elo que a Deus certifica serem direitas as linhas com que escreve os cumes sinuosos dos cabeços. As bátegas esgaivam as chapadas desnudadas pelo fogo e arrastam as batatas no enxurro. No lugar delas, ficam semeadas as pedras queimadas em brasa no mês de Agosto. E o barranco do Demo atafulha-se ainda mais na fundura desconchavada da Serra.

A tudo isto assiste o Zagalo, mudo e sem clamar, em companha da Coimbra, uma rafeira danada para fazer as urzes espirrarem perdizes, e o diabo, amassando o pão que é a comunhão dos três. Sentado no poial, com as mãos ásperas, os dedos gretados, como galhos de azevinho retorcidos pelo tempo das artrites pousados sobre os joelhos, as costas meio marrecas encostadas às paredes de taipa caiadas de imaculado e o chapéu desbotado descaído sobre os olhos pequeninos, o Zagalo não vê o outro lado do vale, não enxerga mais que a terra que os pés pisam, para além das raízes do velho zambujeiro arraigado à porta de casa, onde os cascos do burro se apeiam. Come o pão que o diabo coze sem questões e mata a secura do esquecimento dos homens com o travo da água ferrosa a brotar da bica que enche o tanque. Nunca pergunta porquê.

A vã austeridade do viúvo é povoada pela candura das memórias esgazeadas da mulher, antes do mal fulminante que a fez tombar num canteiro, com uma paveia de vimes nos braços. São lembranças tristes, desvanecidas nas cartas que o filho lhe envia da França. Com a voz de garrafão do Vitalino, o único amigo que lhas sabe ler, falam-lhe dos degraus que desce no inferno dos andaimes encavalitados em cadafalsos pelas pestilentas bulevares de Paris, direito ao dia do retorno aos torrões de xisto do barranco do Demo.

As cartas são sopros que insuflam o Zagalo duma esperança ensoberbecida. Nos dias em que o Vitalino, encharcado em almudes de aguardente, lhas lê como quem canta loas, volta da tasca remoçado. E, os sonhos dos convivas de balseiros de medronho passam a ser também os seus. Pelos corgos, a cavalo no burro, vem lobrigando um polpudo abraço que há-de dar ao seu “Toininho” no dia do reencontro, junto ao Zambujeiro onde o burro se apeia.

Pode então vir o desamparo cruciante dos incêndios, das enxurradas e da solidão esbarrondada. Se o fogo crepita nos sobreiros, o Zagalo pega na Coimbra e mergulham ambos no milheiral ou no tanque de água ferrosa até que a lava tresloucada do vulcão de chamas se amortalhe novamente em pedras queimadas. Se a chuva começa a tamborilar na manta morta até a ribeira galgar os grandes amieiros das margens, o vento urra e o burro zurra, o Zagalo despe-se todo da cintura para baixo, abraça-se à rafeira que lhe abocanha as calças por uma presilha como a um penduricalho, atravessa o caudal gélido, viscoso e barrento, torna a vestir-se, e sobe o resto da ladeira a pé, de bordão na mão, assobiando um corridinho e com uma folha de hortelã atrás da orelha.

Na tasca, o Vitalino, com mais uma carta para o Zagalo dobrada em quatro na algibeira da camisa rota, espera-o, impertinente, a zaranzar por entre os bonifrates que vêm provar a aguardente nova. Esbaforido e alheado do invulgar ramerrão, o “Zé Galo”, nome pelo qual é conhecido na aldeia, entra no tugúrio convicto de que, havendo carta, é hoje que termina a via-sacra. A dele e a do filho, pendurado nos andaimes das imundas bulevares dos arrabaldes de Paris.

– Eh Zé Galo! Pensando eu no diabo e não é que lhe aparece o rabo?! Senta-te aí à mesa pá, temos cartinha… da França! Deve ser do teu “Toininho”! – trovejou a voz embebedada do Vitalino, sem reparar na caligrafia despida dos habituais rabiscos do filho do Zagalo, electrocardiogramas apenas decifráveis pela manha do taberneiro.

– Cheira-me que é hoje… é mesmo hoje que ele diz quando volta! Sempre vão para trinta anos fora – respondeu o Zagalo com bazófia, empedernindo nas faces do Vitalino que esbranquiçavam à medida que os olhos gulosos de ambos sorviam a carta.

E, ao cabo de cinco dias, o filho do Zé Galo tornava à terra embrulhado em quatro tábuas, depois de ter devolvido a alma ao Criador, de cima de um andaime, nos hediondos subúrbios de Paris.

Imagem: O barranco do Demo, mergulhado na fundura da Serra de Monchique.
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De rerum natura

27/12/2009

A não ser na parte em que indivíduos de 15 e 30 anos frequentam o quarto e décimo ano de escolaridade, respectivamente, as telenovelas e outras obras de ficção nacional baseiam-se fundamentalmente em modos, níveis de vida e enredos espampanantes que nenhum português alguma vez ousará experimentar.

Por isso, o leitor mais atento às intermináveis campanhas de publicidade, escandalosa e frequentemente interrompidas por este tipo de propaganda novelística aburguesada, em que todos têm direito a pequeno almoço completo, servido por uma empregada, já terá certamente reparado no spot publicitário de uma marca de café que tem como protagonista o egrégio actor, George Clooney. Na campanha em causa, o sorridente Clooney, acabado de sair da loja onde adquiriu a sua máquina de café nexpresso, vê-se na iminência de ser atingido por um piano em queda livre, sendo a aparição divina do também consagrado actor John Malkovich a sua salvação, exigindo-lhe o saco contendo a máquina de café como moeda de troca por uma segunda oportunidade de vida.

Aconteceu-me o mesmo, há coisa de meia dúzia de dias, mas com um saco de cogumelos.

O resto da minha crónica no Jornal de Monchique pode ser lido aqui.