Setembro na molura. A Serra como um borralho, ajoujada ao sopro de lume afiado que ferve nos dias infinitamente quentes do estio, espreguiça-se em lânguidos bocejos verdes. E logo adormece num restolho vago de vida. Debaixo da sombra pesarosa e desluzida que jorra das tileiras raquíticas do largo, varridos como as folhas secas mastigadas pelo vento a enrodilhar-se em acanhadas refegas contra os pés, juntam-se os doutores da mula ruça.
É à tardinha, à hora em que os doutores da mula ruça lembram o tempo em que eram homens. A hora em que eram homens em busca de uma nesga de afirmação superlativa, enterrados no húmus fecundo dos outeiros, a regressar da jornada, estiolados. Mãos e lombos invisíveis de outros homens que lhes esqueceram a vontade em troco de um nada de fome enganado, condenados desde cedo a ler o Mundo com o olho laborioso da enxada, os doutores da mula ruça recostam-se, silenciosamente, nos bancos achavascados do largo. E escutam.
Aos poucos, aquele lugar é um rio assoreado de velhos com as orelhas desfraldadas às histórias da senhora dona Joaninha Rita. Da janela grande do pequeno quarto, nivelada um metro acima da soleira do largo, ouve-se a voz da mulher, alta, mole e resfolegada, deletreando pedaços de livros e alfarrábios, alheia ao encantamento fulgurado nos olhos das testemunhas prostradas no lado de fora da casa deserta de outra gente que não ela.
Calados, sob a sombra sisuda do largo, os doutores da mula ruça ouvem pensativamente a senhora dona Joaninha Rita enquanto fumam onças de tabaco feroz. Afincados ao de leve entre os lábios secos, os cigarros ardem vagarosamente em zorreiras de fumo que se desvanecem como os finais de tarde e de céu alaranjados. As tardinhas são pedaços de dias a desaguar num abismo de breu picado de estrelas cuja aragem, morna e com míngua de luar, é incapaz de trespassar as frinchas da janela já fechada. No escuro da rua, só com a luzinha palpitante das piriscas a esclarecer-lhes o caminho, os doutores da mula ruça dispersam-se e tornam à lassidão solitária dos lares, de alma cheia e barriga vazia. Voltam amanhã, à hora dos homens. O Vicente, que mora a uma lonjura de três jardas, abala num carro de praça.
Tornam a voltar amanhã, mas a janela do quarto permanece fechada. Quando a senhora dona Joaninha Rita fica deitada, por mor da dor ciática, o Vicente desenterra a melódica do bornal e os doutores da mula ruça começam a trautear modulações antigas, do tempo em que eram homens, polinizando a ternura afogueada do ar com elegância, como se a cantoria rebentasse por entre os grãos desgrenhados da terra preta nos valados, escorresse docemente pelas encostas frescas da Serra e desabrochasse finalmente no largo.
Menina dá-me um beijo não sou rapaz mau / sou aprendiz de ferreiro com espeto de pau… lailailalailalau / Beijo desta minha boca não sai / queres casar comigo pede-me a meu pai / lailailalailalarailarau.
Meneando-se por entre os poros das paredes toscas de cal, dissimulada numa retribuição milagrosa pelas horas de leitura, a solfejação da melódica embalsamava o tabernáculo e aturdia o nervo ciático da senhora dona Joaninha Rita num sono desperto que a deixava a levitar, farta de paz. O compasso surdo dos lábios secos e sulcados, expirando lentamente, acompanhava então o cândido trinado vindo do largo, até se lhe alijar a dor.
Às vezes, acercava-se dos doutores da mula ruça o homem que, de uma vez só, os levara à investidura inexorável da pia baptismal. O Pouca-Telha, o regateiro. Uma tarde, por vingança, pirraça ou serrazina, mete a máquina de sulfatar às costas, e toca a pulverizar a vil calda bordalesa pelas ruas da vila.
– Aquela moita de carquejas serôdias, como burros, apeados no largo, uns dias especados a ouvir as leituras da senhora dona Joaninha Rita, outros a zangarrear e a falar sobre o outro tempo, são os doutores da mula ruça. – pregava, rançoso, em ufanos balidos, renovados entre sorrisinhos retraçados de escorbuto.
Os doutores da mula ruça, que à nascença também não tinham sido consultados sobre a pertinência dos próprios nomes, amassados pelas chicotadas flamejantes que o sol lhes trespassara impiedosamente nas carnes ossudas da alombadura durante os anos da criação, estavam-se marimbando para os epítetos que o pó e cinzas da velhice agora lhes traziam. E ouviam as leituras da senhora dona Joaninha Rita, e cantavam a suas melodias, com a cadência embevecida de sempre.
Aposentado das Finanças muito antes do momento em que o corpo pede a trégua alodial, o Arlindo Pouca-Telha era uma figurilha pitoresca a quem o pino do sol aplainava um brilho gorduroso na penugenta careca. Minou-lhe um caruncho indominável de cólera abespinhada aos doutores da mula ruça o dia em que o Joaquim latoeiro, o Vicente, o Aduela e o Toino golpelha, valendo-se da prosa de um conto escrito por um famoso escritor da vila, derramada no largo pela boca da senhora dona Joaninha Rita, manhosamente o convenceram de que na fonte do largo da feira gorgolhava, pastosa, uma água preta que, não matando a sede, havia de ajudar a matar a fome.
– Diz que até o Presidente da República quer vir aí e tudo…
– É?
– Olarila!
Assomava-se-lhe aquilo como uma fraga virgem com cio de cava. O acontecimento trazia a oportunidade de dar a conhecer o seu génio amordaçado. Se não era doutor nem engenheiro de formação, haveria de agarrar o solteiro ensejo de vir a ser alardeado como artista. Fosse como fosse, não perdia nada em escrever um texto para o jornal, entoando um panegírico “à milagrosa descoberta que desencravaria a Serra da hibernação apática de largos anos”. E, com estas palavras, deixou os doutores da mula ruça deleitados nos bancos duros do largo.
Sem tampouco ver para crer na pureza do negrume a brotar da bica no largo da feira, a composição estampada no papel, três vezes revista e expedida, quando o Pouca-Telha sentiu o aperto do laço que os doutores da mula ruça lhe haviam armado, já o director do jornal rebentava em gargalhadas estrepitosas na redacção.
E, se o Aduela, ao mesmo tempo que a lâmina extenuada da navalha empurra a porcaria debaixo das unhas, se atreve a perguntar para quando sai o texto, o Pouca-Telha espreme-se todo num mar encapelado de pragas e desculpas esfarrapadas.
Foi isto muito antes da senhora dona Joaninha Rita se exilar no lar da Misericórdia e de o Vicente ter sido varado por uma trombose que o deixou de boca ao lado e sem mando nos braços. Hoje, um vento desgraçado penteia os eucaliptais que rodeiam a vila e o largo envolve-se numa solidão de morte, envergonhado. Só ainda lá está o Pouca-Telha, a espiolhar, de braço dado a uma sombra gorda e baça de pernilongo, quem sabe se à procura de petróleo.
No país dos doutores e engenheiros, avaras palavras àqueles a quem a escola pública nunca chegou, nem sequer com um aceno. Os doutores da mula ruça estão na minha usual crónica do Jornal de Monchique.
A origem da expressão «doutores da mula ruça», detalhadamente explicada aqui, neste blogue amigo.