Archive for the ‘Histórias do Arco da Velha’ Category

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A minha avó

30/07/2013

Depois que a minha avó contava uma história, eu tapava os ouvidos. Vedava-os bem para que essas histórias não me fugissem da cabeça. As minhas mãos em concha eram auscultadores de silêncio e eu só podia ouvir a minha imaginação. Sentado ao meu lado, num mocho que o meu pai construíra quando tinha a idade do meu irmão, o meu irmão pegava num galho com a ponta em brasa e riscava o ar em movimentos bruscos, acesos, como se escrevesse a incandescência prolongada dessas histórias numa folha de eternidade transparente. Eu pegava num desses galhos e saíamos os dois para a rua desenhando fios de luz contra a escuridão da noite. Eram as nossas varinhas mágicas, espetadas de estrelas que deixavam um brilho arrastado e calmo sobre os nossos olhos, como pequenas gotas de água a arder.
A minha avó surgia à ombreira da porta e, embrulhada na bata azul que, para mim, era feita da infinidade do céu, ralhava:
– Quem brinca com o fogo mija na cama. – Entrava em casa, um passo demorado atrás do outro acariciando a passadeira de plástico aos losangos, e sentava-se no sofá  mutilado por inúmeros rasgões em frente à televisão, fazendo renda, vendo o “romance”, conforme ela dizia.
Nós ficávamos na rua até que a luz rubra no final dos pauzinhos se extinguisse de vez. A seguir, voltávamos para dentro. Muitas vezes, a minha avó já tinha adormecido. O reflexo azul da película de celofane sobre as lentes dos óculos na ponta do nariz era o único movimento que existia dentro da sala cheia do preto e branco da televisão e das fotografias antigas. Tudo o resto parecia imóvel. Só os olhos da fotografia do meu avô pareciam procurar-me para onde quer que eu me movimentasse na exiguidade da sala. Como se me quisessem conhecer atrás dos meus olhos, depois do meu tempo não se ter sincronizado no dele.
Noutras ocasiões, a minha avó estava desligada de tudo. Os brasileiros do romance falando para o boneco. A minha avó tinha trocado os óculos redondos por duas meias luas de onde via pormenores que eu e o meu irmão não víamos entre os fios de renda. Quando a minha avó fazia renda, era como se tecesse o próprio tempo e o paralisasse em naperões que hoje estão espalhados pelas mesas-de-cabeceira nas casas das minhas tias, nas televisões das casas dos meus tios, nas arcas de roupa velha das casas dos meus primos. A minha avó não foi à escola. A miséria obrigou-a a ser analfabeta. Foi a pessoa mais inteligente que conheci. De modo que aquelas peças de renda foram os bilhetes mais belos e mais delicados que a minha avó escreveu. No seu jeito entrelaçado, numa linguagem de pontos caseados, como se contivessem enredadas as malhas das histórias que a minha avó contava, eles dizem:
– Não se esqueçam de mim!
Todos os dias me lembro da minha avó e desses verões que os olhos marinhos dela refrescavam. Recordo, afogueado, os dias intermináveis de calor sariano e sem aragens a correr, em que eu, o meu irmão e o Mário tomávamos banho em tanques. Lembro-me de subir ao telhado da estrebaria do primo Anacleto. De saltar os canteiros do parente Viriato. De derramar água para os buracos no chão e fazer sair os grilos que havia lá dentro. Para fazer a vida vir ao de cima, basta juntar água. De destruir ninhos de vespas e combater a fúria das desalojadas com raquetes de badminton. De disparar pedrinhas contra uvas morangueiras na velha espingarda de pressão de ar do meu pai. Nesses dias, engarrafei a minha infância. Posso bebê-la sempre que tenho sede dela. O aroma desses dias é igual àquele com que eu, o meu irmão e o Mário nos apresentávamos diante da minha avó, depois de horas e horas a fazer o que nos apetecia, como se nem Deus fosse capaz de saber de nós. Só a minha avó conhecia com milimétrica exactidão o lugar onde nos encontrar: na cave fresca da casa, com muros de pedra fria arrancada pelos braços do meu avô, do meu pai e dos meus tios às entranhas secretas da Serra. Um dia, naquele lugar, o meu avô terá dito:
– Abre-te, Sésamo! – e a Serra desviou as pedras onde se equilibraram as paredes que atravessam firmemente as vertigens do vale.
Os dias de férias na casa da minha avó terminavam cheios de um cansaço frenético e inocente. Eu, o meu irmão e o Mário cheirávamos aos limos dos tanques, a suor e a fumo. Se houvéssemos tido o azar de uma vespa nos ter atacado à ferroada, talvez pudéssemos cheirar também a um unguento de lama produzida com a nossa própria urina, que aplicávamos diligentemente na zona afectada.
A minha avó aquecia uma panela de água no lume, juntava-lhe uma porção incerta de água glacial ordenhada à fonte e enchia um balde cheio de pequenos orifícios no fundo, do tamanho de buracos de agulhas, que voltava a içar no tecto, depois de o arriar. Dentro de um alguidar, eu e o meu irmão puxávamos uma frágil corrente de aço inoxidável e fazíamos chover sobre nós. Infantes de Zeus. Pequenos deuses da chuva.
Lavados, continuávamos cheios de terra. À noite, em frente ao lume que nunca se apagava, a minha avó voltava a contar aquelas histórias que pareciam vir das profundezas da montanha.
Não me esqueci de si, avó. Lembro-me dessas histórias. Lembro-me dos naperões. Coloco-os sobre este texto como se ele fosse uma televisão onde vejo correr as imagens animadas da minha infância. A caneta que escreveu estas palavras tem a ponta incandescente. Agito-a aos ziguezagues na escuridão dos dias e é como se escrevesse numa tinta que há-de refulgir para sempre:
“Avó Júlia”.

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Microconto V: Bomba D

21/07/2013

Depois de muito tempo à deriva numa relação de gravidade zero, sentes, finalmente, o conforto doloroso da terra firme. Acabaste de aterrar no planeta solidão.
O mundo é um lugar difícil para ti. Provoca-te o prurido de uma blusa de lã: não te serve. Dá-te as náuseas de um ovo podre: passou da validade. Perdes o equilíbrio: as tuas perspectivas de felicidade coxeiam. Sentes falta de ar: os teus dons mais instintivos asfixiam num poço penitente de angústias.
Cortaste o cabelo. Perdeste dez quilos numa semana. Os teus amigos dizem, animados:
– Pareces um puto. Estás mais magro. Estás em forma. – Para eles, é tudo fácil. Acham que viraste a página. Mas dentro de ti ressona um velho gordo algaliado, bonacheirão, sem nenhuma vontade de mexer uma palha.
Podias fazer o que toda a gente faz: desatar em queixas, enterrar umas notas na conta de um psiquiatra que te doma o leão da revolta com o chicote da fluoxetina, deixar-te levar por ondas alternativas que fingem que tu és um tipo zen e despreocupado a quem não interessam as merdas fúteis que dão prazer a qualquer pessoa. Mas sabes que as ideias que trazes agarradas à tua cabeça são a coroa de espinhos que ninguém quer usar. Por isso, ouves metade dos teus amigos a lamentar-se de coisas sem assunto sem abrires a boca. Calas-te. Não dizes nada. Quem te compreenderá? Enquanto houver uma criança malnutrida em África, podes agarrar-te ao consolo da tristeza relativa. Há sempre alguém pior do que tu.
Na verdade, podias tentar arranjar mil e uma desculpas para a cama de pregos que estás a atravessar: foi o teu trabalho, foi o serviço cívico na associação de acompanhamento de idosos, foi a tua tese de mestrado bloqueada por um orientador que te ignorou completamente, foi a doença da tua mãe, que te pôs mais louco a ti do que a ela, foram as derrotas sucessivas do teu clube ao minuto 92, foi o filho da puta do aparelho nos dentes que te soterrou no piso menos 3 da autoestima.
Simplesmente, tu não és um desses tipos que se esfarrapam nas desculpas mais idiotas e descabidas. Tu páras e consegues pensar. Há uma Hiroshima e uma Nagasaki prestes a rebentar contigo e tu conheces de ciência exacta a razão do teu sofrimento:
Acreditaste, como um devoto de Fátima, numa certa ideia de amor durante demasiado tempo. Ensanguentaste os joelhos da tua ilusão em voltas intermináveis a esse santuário, esperando pelo milagre. Encarceraste todas as tuas células imperfeitas numa ideia patética e só tua de perfeição. Só que essa perfeição e esse amor que, em vão, procuraste, nunca aconteceram. Tens a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a Bomba D explodirá. Por isso, começas de imediato a apanhar os destroços: durante os próximos tempos dedicas-te exclusivamente a ti. Ainda sabes o que isso é?

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Microconto: Carlos

10/05/2013

Carlos, hoje vi-te no moinho. Quando foi a última vez que estivemos assim, a menos de um metro um do outro, partilhando as mesmas moléculas de ar? Talvez há uns quinhentos anos. Continuas igual, Carlos. Os mesmos olhos de granito apagado, o mesmo cabelo seco de seara em restolho, estás magro como uma vassoura. Quando te apertei a mão e olhei para as nossas palmas unidas pelos dedos a subir e a descer em baloiço, vi os nossos pés. Nos teus, as botas de couro de sempre; nos meus, uns ténis da puma altamente sofisticados, com um peso equivalente a onze bolas de pingue-pongue. Será que tu pesas mais que os meus ténis de marca, Carlos? Estás um lingrinhas, Carlos. Tu tinhas uns pulmões de ferro, eras mais rápido que o space-shuttle, apesar de seres completamente impiedoso para com a bola. Mas tinhas fibra, Carlos. Agora os teus músculos mirraram, têm a espessura das mortalhas dos teus cigarros compulsivos.
Carlos, reparei que continuas metido contigo mesmo, que te recusas a sorrir. É impossível adivinhar quantos comboios de tristeza terão passado por cima de ti. A tua pele é um sarcófago selado a proteger o exterior das mãos-cheias de angústia que te vão explodindo por dentro. És uma espécie de Chernobyl do sofrimento, Carlos. Sei que tens aguentado montes de merdas. Disseste-me mais ou menos isso no preciso instante em que sacudiste as mãos como se o peso invisível do ar as queimasse, como se tentasses expulsar do teu corpo a unha negra do teu polegar direito.
Depois de me confessares que estás a receber o subsídio de desemprego, acrescentaste:
– Um gajo habitua-se a tudo.
Quando me perguntaste que cara era aquela que eu tinha, estive para dizer-te que estava chateado com o padre por me ter dito para não repetir a gracinha de ler com gestos contundentes as sagradas escrituras, que aquilo não era nenhuma homilia. Tu sabes, Carlos, conheces-me, eu tenho tornados nas mãos quando leio em voz alta. As palavras irradiam-me pelo sistema nervoso central até às vísceras. Eu não te disse isto, mas devia ter dito, Carlos. Talvez te conseguisse fazer sorrir uma única vez na vida. Talvez te pudesses rir de mim às gargalhadas! De como sou um egoísta, Carlos. De como sou fútil. De como o meu sofrimento insulta o teu por não ter razão de existir. De como a tua angústia dava para partir o Mar Mediterrâneo em dois, da mesma forma que cada um de nós seguiu a sua vida quando decidi estourar as economias de uma vida aos meus pais metido no meio de livros e tu decidiste ficar no meio da tua lassidão.
Desculpa lá, Carlos, meu amigo, príncipe da simplicidade, por ter-me esquecido que existias durante este tempo todo. “Quinhentos anos”, disseste tu, como se eu fosse o Adamastor.
Desculpa por não ter sido capaz de ter sido teu amigo. Por não estar aí, ao pé de ti, enquanto limpas os suores frios a garrafas de cerveja a ver se te consegues embebedar o mais que puderes. Não tens mulher, não tens filhos, não tens trabalho, não tens ninguém. Só te tens a ti, a vida obrigou-te à solidão. Quem é que pode censurar-te?
Sabes, Carlos, pensei em perguntar-te como é que tinhas arranjado essa unha negra no polegar direito. Mas, agora, já sei. E não me sinto nada feliz por isso. Foi por essa unha negra que eu, hoje, não sou mais um azarado da vida como tu.

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Microconto III: A Culpa é Tua

02/05/2013

No princípio é amargo, mas engoles. Acreditas que o que te está a acontecer é um tronco de tortura do qual sairás uma melhor pessoa. Não há razões para te afligires. És um rapaz acertado, nunca te preocupaste muito em estudar, sacaste umas notas maravilhosas na faculdade, que deixaram a marrona da turma a espumar de raiva, deste-te ao luxo de responder em branco às perguntas mais óbvias de entrevistas de trabalho em empresas cujos administradores faziam figas sobre o teu currículo. Simplesmente, preferiste voltar ao ground zero da tua infância.
As amigas da tua mãe dizem-lhe que, por teres um bom emprego, seres bem-educado, solto de vícios e estares presente em tudo o que é festas tradicionais, és o genro ideal. Mas as filhas, que até acham a tua mãe uma querida, estão mais preocupadas com os teus dentes encavalitados, com os teus pêlos como arame farpado nas pernas, com a tua ligeira falta de altura e de cu para encheres umas calças, com a tua calvície adivinhada na nuca. Nunca se verão a chamar-te “paizinho”. Estão-se a marimbar para o facto de seres um tipo pensante por teres lido Tolstoi. Elas nem sabem quem é Tolstoi.
Até que um dia, uma gorda bêbeda no bar que frequentas repara em ti e insiste em chamar-te pelo nome espanhol do treinador «guapo» de uma equipa de futebol. Munido de alguma auto-estima extraordinária, partes para todos os truques do engate junto das gajas mais giras, mas sem êxito. Ofereces prendas, estás presente nos momentos mais difíceis, disponibilizas-te para fazer o PowerPoint da defesa da tese de licenciatura. Nada. Continuas cem por cento a zeros.
– Só a mi gos! -assevera uma a quem te atiras de cabeça, a partir de uma declaração de amor adaptada de um poema do Almeida Garrett.
Começas a ser visto pelos teus amigos como o microondas, “o tipo que as aquece para eles, depois, comerem”. E, claro está, flipas completamente. Passas a viver do ar, ficas muito tempo parado debaixo do sol à espera da fotossíntese para, finalmente, conseguires pensar. Quando o fazes, trocas-te todo. Os nomes das pessoas. A geografia dos objectos. Viras a ordem das acções ao avesso. Chegas mesmo a colocar pasta de dentes no piaçaba e acordas no exacto instante em que as cerdas se aproximam da tua boca.
– Meu, o que é que se passa comigo?! – ralhas a ti próprio.
Normalmente, cobardolas como tu aliviam-se desse peso no peito com uma medida universal: 9 milímetros. Tu não. Deixas- te levar pelo mau feitio, deixas o bom menino que foste um dia ir-se embora de vez, ficas a achar que toda a gente te quer tramar. O mundo é um mau lugar para se viver. E a culpa disso é inteiramente tua.

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Microconto II: O encantador de serpentes

25/04/2013

MICROCONTO II – O encantador de serpentes.

– Desta vez é a sério – dizes. – Mesmo! – Os teus amigos fazem troça, desaparafusam os indicadores da extremidade das testas. A festa parece propícia à diversão geral, menos à tua.
És o D. Juan do grupo, o pêssego, cento e oitenta e cinco centímetros de musculatura de arame. Uma fibra de puro sangue lusitano. Andas realmente marado. Tentas disfarçar a travessia do sahara amoroso tossindo um cigarro mal fumado. O teu melhor amigo ri-se de ti, chama-te encantador de serpentes e desfecha-te uma bofetada moral com o bife cru de todos os descaramentos:
– Devias considerar meter-te na política.
Não acredita em ti. Bem, na verdade, depois de traíres, ignorares e desapontares reiteradamente um balúrdio de miúdas adoráveis que te veneraram como a um santo, ao ponto de as bem-aventuranças dos mártires parecerem heresia, já ninguém acredita. Ninguém.
Pedes-lhe que olhe, não agora, que dá uma bandeira do caraças, dali a pouco, para a miúda no canto da sala que te despeja uns olhares avassaladores dentro dos quais julgas ver cartas de amor por abrir.
Avanças para ela, decidido. Abres a boca, mas sentes-te a respirar na lua. Mal consegues falar.
– Não… – interrompe-te. Sorri maliciosamente como se te tivesse acabado de mudar a fralda. O resto é sancionado pelo silêncio uníssono na voz de ambos:
– És um cretino!

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Acerto de contas

04/04/2013

Fizeste asneira da grossa e ela acertou-te o passo: deixou-te. Na tua cabeça, uma confusão do diabo, um furacão de culpa e de remorsos por apaziguar. Um vento a soprar de dentro para fora. Não dormes a ponta dum chavelho e acordas como se tivesses corrido a maratona olímpica e terminado no último lugar. Abres a janela do quarto e sentes vontade de esborrachar-te do nono andar do cubículo desarrumado a que chamas casa, de encontro ao magnetismo impulsivo do chão sujo da rua. Reparas que o dia nasceu ao sol. Mudas de ideias. É um dia perfeito para ela te perdoar. Não te perdoa. Não te perdoas. O mundo não acabou.

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Vontade

27/03/2012

Uma cria da liberdade transumante,

Tomada pelo delírio primaveril,

Saltou as grades do redil

Num dia baço e circunstante.

E foi por si, mais adiante,

Juntar-se ao rebanho da ternura

Que apascenta numa rocha

Onde o verde desabrocha

Entre o milagre dessa aventura.

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Natal

25/12/2011

É uma história de Inverno:

Chovia.

O Menino, embrulhado em frio e calor materno

A muito custo

Adormecia.

O rei, que era injusto,

invejoso e sofria,

Mandou calar o choramingar

Que a noite ouvia.

Cega, a espada vingadora

Correu casas e ruelas,

Arrombou portas e janelas

Sem ver no curral a manjedoura.

A salvo do tirano,

Glorificou-se o Menino

E tornou-se mais humano

O frio desse Natal Divino.

 

Na edição natalícia do Jornal de Monchique, há um conto sobre um Natal terroso e concreto, onde o poder humano é tão gregário e tão essencial que parece milagre o calor doce que irradia das criaturas que o habitam.

 

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Lázaro I

02/11/2011

Lá vou lavrando a minha prosa, lapidando palavras, na íntima certeza de que cada frase construída é um muro escarpado só tornado transponível após horas e horas de arremesso laborioso da picareta contra a rijeza desprendada do talento. E fico à espera, cheio da mesma paciência. À espera que uma só revelação dos sentidos possa surpreender até o mais intransigente dos carrascos de tudo aquilo que digo, escrevo e faço: eu.

 

Eis a minha habitual crónica no Jornal de Monchique.

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Pedras Queimadas. Obrigado!

29/09/2011

Com uma vontade férrea, procurei ser fiel à realidade autêntica do Barranco do Demo e das gerações que vêm habitando esta Serra. Somítico nos dons, enjeitado pelo talento, porfiei o mais que pude. E quando o fôlego me faltou, foi a aragem do vosso apoio que me retemperou a lira. Debaixo dos dedos tenho uma tábua plástica com uma sopa indecifrável de letras, quando o que precisava era de uma bigorna e um martelo para poder forjar a humildade da palavra mais humana que me ocorre dizer-vos: OBRIGADO!

Em baixo, deixo-vos relembrar as palavras do texto:

PEDRAS QUEIMADAS

Na fundura do barranco do Demo não há mal que dure sempre nem bem que não se acabe. A crueza de um e outro funde os anos em duas estações só. No Verão, vem o bafo quente do Suão e logo os sobreiros se põem vestidos de uma lava viva de labaredas incandescentes barbeando os cerros com uma fome tamanha que nem as pedras escapam, ardendo também. Uma tristeza fúnebre. Salva-se a courela do milho a remendar de verde a paisagem lutuosa. Depois, a Invernia e o tempo voltado do lado do pego. Os aguaceiros são fios-de-prumo ligando céus e terra, certificando a Deus que são direitas as linhas com que escreve os cumes sinuosos dos cabeços. As bátegas, gordas, pesadas, com uma força de mil braços, esgaivam as chapadas desnudadas pelo fogo, arrastam as batatas na torrente, deixam no seu lugar as pedras queimadas em Agosto, e atafulham ainda mais o barranco do Demo na fundura desconchavada e solitária da Serra.

A tudo isto assistiu o Zagalo, mudo e sem clamar, em companha da Coimbra, uma rafeira danada para fazer as urzes espirrarem perdizes, e o diabo, amassando o pão que foi sempre a comunhão dos três. Sentado, com as mãos ásperas e gretadas sobre os joelhos, encostado às paredes de taipa caiadas de imaculado e com o boné repassado a descair-lhe sobre os olhos, o Zagalo não via a outra encosta do vale, não enxergava mais que a terra que os próprios pés pisavam, para além das raízes fundas do velho zambujeiro arraigado à porta de casa, onde os cascos do burro se apeavam. Comia o pão que o diabo amassava sem questões. Dizia, amochado: «- é o destino», e matava a secura do esquecimento dos homens com os infindáveis travos de lealdade da cadela e do burro velho. Um dia, rasgando o aço maciço do silêncio, perguntou-lhes: «-Porquê?».

Na cabeça, iam-lhe já envelhecendo as memórias esgazeadas da mulher antes do mal fulminante que a fizera tombar com uma paveia de junças nos braços. Eram lembranças desesperadas que se desvaneciam a cada carta que o filho lhe mandava da França. Com voz de garrafão, o Vitalino, o único que as sabia ler, contava-lhe, ao balcão da venda, sobre mais um degrau que o filho descera no inferno dos andaimes encavalitados nos pestilentos bulevares  de Paris. Vagaroso, o rio de ilusões desaguava direito aos torrões de xisto do barranco do Demo, insuflando o Zagalo duma esperança ensoberbecida. Era certo e sabido. Nos dias em que o Vitalino, encharcado em almudes de aguardente, lhe apregoava as novas benfeitorias do filho, voltava da tasca remoçado. Ossos novos para a Coimbra e feno fresco para o burro e tudo. Os sonhos que ouvira contar aos outros homens lá da tasca passavam a ser outra vez seus, também. Pelos corgos, a cavalo no burro, os corações de ambos a cem à hora, lobrigava um polpudo abraço que havia de dar ao seu Toininho no dia do reencontro.

Viessem os incêndios e as enxurradas. Tanto se lhe dava: se o fogo crepitasse nos sobreiros,  pegava na Coimbra e mergulhavam ambos no milheiral ou no tanque de água ferrosa até que a lava tresloucada do vulcão de chamas se amortalhasse novamente na ossatura das pedras queimadas. Quando a chuva começava a tamborilar na manta morta até a ribeira galgar os grandes amieiros das margens, uivasse lá o vento, zurrasse lá o burro, despia-se todo da cintura para baixo, abraçava-se à rafeira que lhe abocanhava as calças por uma presilha como se dum penduricalho se tratasse, e atravessava o pastoso caudal lamacento de bordão esguio na mão. Uma folha perfumada de hortelã na orelha, um corridinho finamente assobiado e punha-se ao caminho, sorridente.

Na tasca, o Vitalino, com mais uma carta dobrada em quatro na algibeira da camisa amarrotada, esperava-o, impertinente, a zaranzar por entre os homens que provavam a aguardente nova. Esbaforido e alheado do invulgar ramerrão, o “Zé Galo”- nome pelo qual era conhecido na povoação – entrou no tugúrio com a mesma esperança de sempre. Havendo carta, seria o anúncio do fim da via-sacra. Dele e do filho, pendurado nos andaimes dos bulevares imundos dos arrabaldes de Paris.

– Quando a gente pensa no diabo aparece-lhe o rabo! Senta-te aí, pá! Temos correio de França. Deve ser cartinha do teu “Toininho”! – trovejou a voz de garrafão ébrio do Vitalino, sem  se dar conta da estranheza da missiva. Em vez dos habituais rabiscos do filho do Zagalo, que mais pareciam electrocardiogramas apenas decifráveis pela manha do taberneiro, vinha agora uma letra morta e redonda, frases curtas e insonsas, sem nenhuma saudade desenhada.

– Desconfio que é hoje… é hoje mesmo que ele diz quando volta! Sempre vão para trinta anos lá fora – atalhou o Zagalo com bazófia, sem se aperceber como as faces do Vitalino encaneciam à medida que os olhos de ambos sorviam as palavras escritas na carta.

E, ao fim de uma semana, o filho do Zé Galo voltava a casa depois de ter entregado a alma ao Criador, de cima de um andaime, nos hediondos subúrbios de Paris.