Ainda a espinha se afeiçoava ao aconchego da cadeira e mal pude não reparar naquela senhora. Com os cabelos amarelados, repassados pelo secador, vestido “sem costas” e toilette encharcada em colónia de baunilha rasca, lia, à pressa, uma folha de apontamentos escolares, certamente pertença da filha, uma belfa adormecida prostrada a seu lado. No título da folha podia ler-se: “Os Maias – Resumo“.
Atirados de imediato às ripadas do cajado, dando início à peça, os primeiros acordes do Cruges lembraram-me o meu livro de bolso d’ Os Maias, de capa avermelhada, riscado e rabiscado com anotações didáticas e outras iconografias aludindo às aparvalhadas paixões do secundário.
A arrebatadora interpretação do elenco encenado por Rui Mendes, o aclamado Duarte do Duarte & Ca., correspondeu fielmente a cada frase do livro, fazendo-me reencontrar as imagens que idealizei aquando da leitura da obra, pela qual desembolsara 700 paus, cerca de 10 anos antes.
O Maestro Cruges, na quase muda intelectualidade da sua ignorância, continua a ser o meu personagem preferido. Hoje, ainda me revejo no diletantismo de João da Ega e Carlos da Maia, tal como mantenho a ideia de que o ridículo e a infâmia do Dâmaso Salcede são levados da breca.
Lá para o fim do espectáculo, um enfastiado bocejo ecoou no auditório, despedaçando a plateia. A senhora emperiquitada da fila da frente, abriu também a sua boca de hipopótamo, contagiada. A filha, de xaile de seda branca às costas e cabeça babando sobre o ombro da mãe, há muito que adormecera, logo às primeiras notas do Cruges.
Mal caiu o pano ouvi a emperiquitada senhora balbuciar a uma outra, sentada à sua esquerda: «Eça de Queiroz é um dos maiores escritores do romantismo nacional, mas felizmente que hoje também os temos dos bons! Há a nossa Margarida Rebelo Pinto. A adaptação dos seus romances ao teatro também era capaz de resultar…»
O ronco daquela criatura fedendo a baunilha, deixou-me à beira de um AVC. Esgazeado, vi a cabeça do Dâmaso sobre os destapados ombros da sujeita. Só tive tempo de correr dali para fora, antes que aqueles lombos ao léu me pedissem vergastadas…
«Chique a valer, hein?!»