Posts Tagged ‘Serra’

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Saber viver

08/10/2012

Tem nos olhos uma luz lírica, indefinida. Às vezes, torneada por um azul cheio de céu e de mar, noutras, pela sombra verde e frondosa dos castanheiros que apenas se dão a certas altitudes. Cada palavra caída dos lábios é neve emotiva na alacridade dos sentidos e no chão fofo do entendimento. Tira-nos peso do peito. Manuseia com fina destreza todos os lumes da vida. Os mesmos que, na ânsia fascinada de os agarrar, me têm deixado bolhas opadas nas palmas das mãos.

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Cascata do Barbelote

29/08/2012

Tanto tenho bendito os inquebráveis encantos desta cascata renovados a cada gota de água ordenhada às penedias circundantes, que hoje, ao conhecer por dentro as entranhas arruinadas da velha aldeia sobrestante, paradas num silêncio virginal imposto por uma seca agressiva que cala a fúria até ao mais irreverente dos regatos, é que eu pude concluir que todas as palavras sobre ela ditas ou escritas fazem de mim um insanável pecador a jurar o santo nome da Natureza em vão.

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Artechique

29/08/2012

Mãos engenhosas que, desde que o mundo é mundo, entretecem medas de vimeiro como tranças de cabelo, talham colheres de pau remexendo o caldo do tempo, tendem no linho os fios da vida, apontoam na renda o toque delicado e maternal da serra,sentam, em cadeiras de tesoura ou tabúa, bisnetos e antepassados à mesma mesa fraternal, pintam de um sol doce e pegajoso a lida aturada nos favos dos cortiços e transformam o pó insípido do chão num bolo que tem o doce crestado da terra.

É em Monchique durante o próximo fim-de-semana.

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Perfil

14/07/2012

Serra. As tuas fragas são seiva

Bruta a correr-me nas artérias.

Linhas duras e incompletas

Repletas

De espinhos coroados de misérias.

Do topo do espinhaço da ventura,

Calhaus rolados de amargura

Lançam-se à sua rudeza intransigente

E caem na fúria da torrente

Que não se cansa

De se procurar

E, sem nunca se encontrar,

Nunca se alcança.

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Gerês

11/07/2012

Gerês. Aquilo que o léxico me não dá em significação, concedem-me as paisagens em largos panoramas de renovação. Em ambos metido a cabo, caminho com as raízes fincadas nos sentidos, aprofundando o vínculo umbilical com a matriz autêntica que a inexpressividade de nenhum tempo deforma. Só quem tem raízes incansáveis pode conhecer os carreiros tortos por onde medra a linguagem dos seus ramos. O meu húmus nativo é um lugar de essência irmã a esta, germinada em relevos acidentados atropelados por colinas tumultuosas, serranias adaptadas de verde flagrante e fácil, bailando numa beleza ruminante que mata a sede nos  barrancos impetuosos onde Judas deixou as botas. Mas para melhor olhar e compreender o mundo, ainda mais do que ganhar altura, temos que nos desmedir nos muros emotivos de certas distâncias. Era, pois, imperioso vir urdir os pespontos telúricos da rede geodésica existencial na placidez incontornável destes talefes austeros e combativos. Se a paisagem é um destino, e o destino um somatório de estados de espírito, foi a subida à Fóia e à Picota que, num dia remoto, como o clarão da estrada de Damasco, me balizou os horizontes da alma e me condenou ao fatídico entremez de embalar fragas pela vida fora.

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Serra

12/06/2012

O dia foi uma faina venturosa, à desgarrada das pernas e da imaginação, a mostrar a um antigo camarada de academia os escaninhos ocultos desta minha Serra. Uma radiografia diáfana ao cenário montanhês monchiquense, palco insensível de inúmeras tragédias humanas cuja grandeza fatídica nenhuma biografia coscuvilhou. Miradouros familiares e sobranceiros, as paredes violentas levantadas pelo suor verdadeiro da erosão no Barranco do Demo, o Castro do Alferce no pranto pedregoso da sua solidão, as águas santas a chalrar nas nascentes da Fornalha e da Malhada Quente. Altares sacramentais galgados à sobreposse, na legitima ufania de quem os vê pela primeira vez e deles se despede misticamente, como se estivesse a receber a bênção da extrema unção.

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Páscoa

08/04/2012

O instinto de conservação pode muito. É dia de Páscoa, e eu, transviado da significação íntima desta Festa, sem outra lanterna de fé senão a devoção fanática pelas maravilhas da Natureza, vim até este Gólgota sienítico apreciar a vida saída do sepulcro invernal, renovada num painel adoçado em cores e perfumes diversos. A Sul, a procissão real de montes termina num mar raso espelhando o Altíssimo. Um panorama inolvidável, até onde os olhos podem. Prolongado nos horizontes, sinto-me desobrigado, sem sofrimentos, sem chagas e sem lamentações. Ressuscito nos mistérios da paisagem. Talvez seja porque a variedade da vida é invariável em todos reinos – humano, animal e vegetal – e o desafio da existência é ganho a perdê-lo.

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Choveu

02/03/2012

Ao romper da manhã, as nuvens, plúmbeas e carregadas de cansaço, como uma joldra de trabalhadores do campo a esvaziar os casebres tristes nos sopés das colinas, subiram pesadamente a Serra e venceram a aridez desesperada dos telhados. Só a couraça de pó espesso nas estradas e nas safras permaneceu recolhida na súplica miserável de quem olha um desconhecido que passa sem deixar esmola. Ontem, depois de dias contínuos de vida parada, choveu outra vez.