Archive for the ‘Ossos do Ofício’ Category

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Ilha de Tavira, 22 de Junho de 2013

22/06/2013

Mais mar. O pólo positivo do meu pólo negativo. De todas as grandezas naturais da Terra, esta é a única com a qual não tenho o desplante de me comparar. É que este céu fundeado em água e sal vai até aos confins do mundo (o real e o sonhado) e eu só consigo ir até aos confins amargurados do meu desespero.

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Os meus livros

22/06/2013

Somos, realmente, aquilo que lemos. As estantes deste sarcófago que é o meu quarto são autênticos relicários onde está guardado aquilo que sou e até onde poderei vir a ser. São eles o epicentro dos meus transes, dos meus maiores arrebatamentos psíquicos e das minhas ousadias mais inquietas. Estarão para mim, no futuro, como as ruínas de hoje estão para as singularidades das civilizações antigas, mortas às mãos aterradoras das próprias perdições. Leio-os até à quase volatilização dos sentidos e à súbita sublimação consciente do entendimento. E são tantas as vezes em que só sinto o coração a bater nas têmporas e no peito graças às páginas que devoro como tremoços. Os livros são pilhas onde assentamos os pés da imaginação para nos fazer crescer o tamanho da alma. Tenho em mim todas as Dulcineias idealizadas, todos os Raskolnikov atormentados e todas as baleias indomáveis dos mares da liberdade. Sou de capa dura, mas estou cheio de ilustrações para crianças.

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“Teixeira tem Talento”

20/06/2013

Novo encontro com jovens da minha antiga escola secundária. Marginal na minha marginalidade, não podia fazer-me desapercebido ao aceno que vinha de onde também eu venho. Li-lhes três dos meus poemas, alto e bom som. Três peças de roupa a menos, que mostraram os confins da minha nudez desfigurada. Mas o meu maior pudor foi quando imaginei na plateia o a figura desatenta de um rapazola irrequieto, de ouvidos moucos e com penugem no buço. Um rapazola que só deu ouvidos aos poemas após quinze anos a carregar com eles, quando os leu para os outros, cheio de vontade de que esse menino ainda lá estivesse a fazer pouco dele, a depreciá-lo e a mandá-lo parar.

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O tempo é uma vaga noção indefinida

20/06/2013

Meto dó a desandar na roleta do meu próprio descalabro. Enquanto vou tirando as pétalas ao malmequer da vida, aguardo, com uma certa inflação de desespero e de impaciência, por um indeterminado não sei quê, um golpe de asa, uma vaza inédita que me valha pela eternidade. Hoje, por distracção, tentei enganar o vagar do tempo adiantando as agulhas ao relógio, fiado na crença de que quando esse momento acontecesse, a pressa do que havia de ser seria já o que tinha sido. O futuro seria o presente antecipado e, no exacto período da sua ocorrência, o presente teria sido convertido em passado. Tenho uma temerosa dificuldade em sincronizar-me com os metrónomos quotidianos. Hipnotizado pelo pêndulo da ilusão, só consigo compreender a actualidade das coisas fora do seu tempo: ou por antecipação, ou por recordação. A significação das minhas acções cumpre-se na estratosfera onírica do desejo ou nos desaterros melancólicos da lembrança.

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Aí está ele!

06/06/2013

Depois de uma semana de bebedeira nos sentidos, seguida de uma outra de sonambulismo convalescente, a ressaca peçonhenta da realidade. Bem fujo, mas não há maneira. O sofrimento é a minha segunda pele.

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Descampados sociais

28/04/2013

Cá continuo a contar palmos aos meus descampados sociais. Mas quais deles serão maiores? Os que me são impostos, impenetráveis às minhas razões, ou aqueles que escolho por mero instinto de liberdade crítica, onde o eco dessas razões facilmente se dissipa?

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Perdido e não achado

22/04/2013

Deixei voar do bolso de trás das calças um poema, escrito nas costas de um talão de compras, com o qual andava a combater há vários dias. Agora, nada tenho de significativo a apresentar à brancura negra deste diário. O meu encontro com o dia está irremediavelmente perdido. Perdido por falta de comparência.

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Regresso

04/03/2013

Regresso à minha escola secundária, onde falei sobre poesia e sobre livros aos alunos que me sucederam nas carteiras. Diante da mesma ardósia onde li em voz alta D. Dinis, Garrett, Bocage, Camões, Antero, Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Torga, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen e outros predestinados da lira, foi-me consentida a ocasião de dedilhar as cordas vocais e dar à atmosfera um ar dos meus próprios versos. Exposto às fatias perante um auditório de jovens, foi como se assinasse no livro de ponto o sumário judicativo do futuro. Só eles, na secreta lucidez de amanhã, estarão habilitados a dizer se as magras palavras que depositei hoje no mealheiro da esperança trarão juros suficientes para que possam reparti-los caridosamente comigo na velhice.

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Realidade existencialista

08/02/2013

Sou pelo ideal de que cada homem é responsável por cada circunstância do próprio destino, e actuo ao arrepio das implicações respectivas. Mas como nasci cabeçudo, contrário ao sentido de todos os ponteiros dos relógios sociais, não há meio de engrenar no mecanismo da convivência. Trabalho, entrego-me, procedo em conformidade com os despachos exarados pelas boas intenções da consciência, sou um saco aberto de disponibilidades imediatas, e sai-me tudo vertido às avessas. Mete raiva: reajo tarde, mal, a despropósito e sem proporções dignas de encher as razões que espoletaram a agressão. E vai de gastar-me a pedir desculpa e voltar à casa de partida todo crivadinho de remorsos. É uma lufa-lufa diária em que desfaço à noite o enxoval íntimo cosido aos corações alheios durante o dia, e me compara aos desmanchos de Penélope. Com esta diferença, apenas: ela fazia-o e ganhava tempo; eu faço-o e perco a vida.

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GPS emotivo

12/12/2012

Disse-me hoje uma pessoa amiga, quando me viu de receptor GPS nas mãos, a descarnar as ossadas ao ofício:
– Você, com essa maquineta nas mãos, faz maravilhas! Não se perde nem deixa que ninguém se perca!
Espantosamente, mal sabia ela que, apesar da minha investidura académica no ofício de Estrabão, não obstante as modernas virtudes requintadas dos aparelhómetros, tenho passado a vida inteira à procura dos pares exactos de coordenadas que me levem à acuidade afectiva de um semelhante, de um amigo, de Deus, e sinto-me sempre desnorteado, a perder o rumo, numa trágica desorientação.
E se eu lhe tivesse respondido isto, saberia ela georreferenciar-me em terra firme, fora do mar picado da incompreensão?