[Estige, Aqueronte, Cocito, Flegetone e Letes, são os rios que sulcam as paisagens flamejantes do Inferno. Banhando as margens lancinantes onde se amontoam os espíritos, as áridas águas paradas a crepitar no leito saciam a amargura sequiosa do passado e lavam a alma num profundo esquecimento. O Letes e quem dele emborcou uma golada imémore, no casculho habitual de que é feita a minha crónica no Jornal de Monchique.
Tratando-se do arranjo de um esboço de história já conhecida dos mais vetustos seguidores do blogue, volto a partilhá-la aqui mesmo, na terra escalavrada em que foi semeado, livre dos pudicos químicos de síntese a que a publicação num jornal respeitoso deve obedecer:]
Ao dobrar a curva do tanque do povo, o sentido faminto da matilha de rafeiros tresmalhados e ensopados com que se cruzava sem se dar conta, parecia muito mais obstinado que o da sua própria vida. Trôpego, com retumbantes passadas que faziam reflexo nas paredes estranguladas da azinhaga, de colher e talocha nas mãos, despontou no portaló da venda como uma quimera macilenta. Reprimido pela mão forte e temulenta da Gravidade, era-lhe difícil retesar-se. Ergueu-se frouxamente, ao mesmo tempo que a voz tão pesada como as pálpebras inertes por debaixo do boné atafulhado até metade das minúsculas orelhas se arrastou num azedume de berros taciturnos:
– Não me toquem, não me toquem! Que ninguém me toque! Faz favor…que ninguém me toque!
De imediato, abeirou-se dele o empregado. Compadecido, contestou:
– Olha o Juquinha, está de mal com o mundo, amigo? – Ainda mal as palavras do empregado lhe marulhavam nas profundezas do canal auditivo e o Juca larião, que tinha uma voz rouca, de arrã, já remoqueava de volta:
– O meu irmão…tenho aqui uma coisa boa para ele: Um par de peras. Hoje dou-lhe um par de peras…madurinhas…boas! Um parzinho de peras na focinheira! Levo eu a mourejar, alombo a carregar o mundo pedra a pedra… A minha mãe desunha-se e o lorde mama-nos tudo. E que o mandrião nos roube, que o sacripanta não queira trabalhar, não faz mal. Ainda forro algum para tabaco e cerveja. Agora, dar porrada à minha mãe por não lhe querer pagar os vícios?! Descambou ao ponto de prometer-lhe mais uma parelha de cacetadas amanhã… Nem pensar! Duas peras dou-lhas eu hoje. É pôr os pezinhos em casa! Eu bem tenho andado aí à procura dele pela vila. Corri seca e meca e olivares de Santarém…
Ódio e amor eram azeite e águas-ruças brotando diluídos nas profundezas confusas das emoções diluvianas em que se afogava. Na geografia do monólogo de Juca não existia nem raia nem guarda a apartá-los. Falava de um e de outro como se fossem um só, uno e indivisível.
– E hoje estive com a minha garina. Fizemos as pazes esta tarde. – Dizia e esfregava as mãos como se nelas polisse o sentimento que as vestia e deitava uma risada marota.
Na mesa ao lado, dois rapazes assistiam a tudo, inebriados. Acamaradou-se com eles e falou-lhes do leito amoroso, da discussão com a garina, dos golpes de charme que a faziam babar por ele, das melosas juras de amor eterno, do pino e outras manobras de corpo que tinha conseguido exibir durante a tarde, justamente para a impressionar. Convincente, tagarelava sobre a felicidade que lhe percorria o corpo, desde a alma até aos ossos, gesticulando com os dedos amarelecidos pelo tabaco, até se lhe abafarem as palavras numa capa de escuma esbranquiçada aos cantos da boca.
E não fora o Pouca-Telha, que do balcão examinava aquela descrição abocanhando cervejas que ingurgitava de enfiada, a decidir-se a contar a profunda sesta ébria do Juca larião por sobre uma das mesas da esplanada do café do largo, durante toda a tarde, e todos teriam sido persuadidos de que, apesar das contas a ajustar com o irmão, estava realmente feliz. Foi, pois, um pormenor, uma triste minudência a estragar tudo. Felizmente, não foi dita a tempo de envergonhar quem quer que fosse por já lá não estar o Juca larião, novamente relutante em tornar a casa e cumprir a promessa de entregar o «par de peras» ao irmão.
Pela Serpa Pinto, tornou a dar de chofre com a matilha de cães vadios escarafunchando um contentor de lixo tolhido pela enfartada ventania. Uma malha de poças enegrecidas entristeciam a rua e tornavam ainda mais lúgubre a figura de Juca larião, bamboleando às tabelas nas paredes escorregadias, furtando-se por entre os fios irritantes da chuvinha insípida que pouco ou nada o molhava.
Bambeavam-lhe as pernas quando, já à porta de casa, arfava pestilentas baforadas azulinas que ofuscavam o vidro do postigo. Ao cabo de uma dúzia de mocadas contínuas que fizeram estremecer de medo a porta musgosa, a figura do irmão apareceu do outro lado, de olhos semicerrados por um sono narcotizado. Começava a porta a entreabrir-se e o larião, num assomo de Sansão, já a empurrava contra o outro, atravancando-o junto à parede. Com as duas manápulas acopladas ao gargalo do irmão, Juca aproximou-lhe o bafo silencioso e tépido e fitou-o nos olhos lancinantes. O outro acovardava-se, impando à medida que as forças se lhe sumiam concentradas nas palmas das mãos de Juca. Enfraquecido pela incontornável pena fraternal, com a sua vozinha de arrã, o larião coaxou finalmente:
– Um par de cachaporras nos queixos e passavam-te as manias… Sabes que mais?! Cago-me em cabrões que amanhã chove merda! Amaldiçoado sejas! – Largou-o, esmorecido, e foi escanchar-se na cama, sem sequer tirar a roupa, apenas as botas e o boné, deixando o cabelo num molho de tojo acamado.
Acordou, estremunhado, não era ainda madrugada, com os ouvidos perfurados pelo barulho das goteiras que batucavam ferrugentas numa lata de tinta velha. Ao lado, o irmão roncava. A boca sabia-lhe a podre e um ligeiro azamboamento tolhia-o pulsando em pontadas ritmadas compassadamente na cabeça. Ergueu-se, enfiou as botas gastas e cansadas. Atafulhou o boné, e foi à labuta.