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Mais solidão

02/01/2014

Cá estou eu, no meu exílio interior, preparado para pousar a cabeça numa almofada de penas de solidão. A solidão. Prezo que ma prezem, gosto deste ermo onde me escondo de mim mesmo e que, visto de fora, parece sempre a mais distante das lonjuras, mas continuo sem saber encontrar uma maneira de a definir sem lhe dar uma aparência ainda mais árida, mais espinhosa e mais repulsiva. É uma coisa tão grande, feita de uma clareira de ausências ocultas de tal modo inestimáveis, que por muito que leia dicionários, por muito que devore literatura, por muito que me desunhe a escrever, por muito que a vá enchendo de palavras, de todas as que, até agora, conheço, não existe uma que caiba dentro de tamanha infinitude.

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Crónica de umas crónicas

02/01/2014

Comecei hoje a ler mais um Livro de Crónicas do Lobo Antunes e comecei mal. Principia o primeiro texto com a especificação de uma data precisa. Um dia de verão, grande, como aquelas visitas inoportunas que vêm sem aviso, desarrumam ainda mais os esconsos da sala e vão ficando, ficando, sem pressa de ir embora. Um dia grande, de horizontes descampados, como uma imensa paisagem sem relevos. E o mal de dias assim é que nele tanto se podem desenrolar alegrias infinitas como se podem estender grandes prantos desmedidos. Tudo depende do lado de dentro dos olhos que lêem o calendário. Mas foi um livro oferecido por alguém a quem, à força da ternura escondida nas lágrimas e nos sorrisos, posso encostar a cabeça e dizer “mãe”, e é por isso que vou atravessar estas páginas com a mesma obsessão com que quero enfrentar as páginas em branco da minha vida: com a coragem de assumir como medularmente meus os sentimentos que me doem e fazem de mim esta existência empedernida que cada vez mais se desconhece a conhecer-se. E depois é esperar que a significação daquela data não seja mais uma intermitência interrogativa e possa, com o viajar do tempo, tornar-se num dia que passa por nós sem darmos por ele. Um dia de verão igual aos mais, grande e sem palavras. Grande como um ponto final nesta vontade sofrida de escrever.

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Regresso a casa

02/01/2014

Depois de cinco dias retemperados em Lisboa, regresso a casa. Mas precisava de prolongar esta massagem do esquecimento por, pelo menos, mais uns cento e setenta e cinco. Que os dedos citadinos do deslumbramento fossem penetrando suavemente em círculos lentos nas contraturas emotivas até que este corpo macerado por dores fantasma deixasse de o ser, afinal. Que chegasse a um par de coordenadas precisas entre aquilo que sou, que é de Monchique, e aquilo que sonhadoramente queria ser, que é daqui, e que o mar de dúvidas e contradições em que vivo balanceado serenasse em ondas descansadas. Mas é um regressos casa. E o sítio de onde somos só muda de lugar de duas formas: ou pelo músculo cataclísmico da geologia ou porque os olhos surpreendidos ou reprovadores que o reencontram não são mais os mesmos. Ora este meu regresso é animado por uma alegre melancolia. Qualquer coisa parecida àquela que sinto quando saio a assobiar do quarto pela manhã fora e a minha mãe me diz:
– Lindamente canta o rouxinol pela aurora!
E só eu e ela sabemos que o silvo cónico que me sai dos lábios é apenas mais uma maneira silenciosa de livrar-me do desespero.

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Visita de passagem

02/01/2014

Passei pelos portões da Universidade onde durante uns magros anos fiz os meus votos como apóstolo de Estrabão. Não senti a indiferença mutua e desoladora do cão que atravessa a vinha vindimada igual à vivenciada por Miguel Torga. Não cheguei a tanto. Pareceu-me apenas que as memórias dissolvidas que me chamavam ao interior do edifício me implicavam numa coisa alheia, numa rotina remota do que fui há dez anos e, sobre a qual, não tenho responsabilidade nenhuma hoje.

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Na casa dos Bicos

02/01/2014

Lá consegui entrar na Casa dos Bicos. Subi a escadaria, demorei-me uma curta eternidade na exposição sobre a vida e obra de José Saramago, disse-lhe uns segredos que trazia fisgados para lhe revelar, apresentei-lhe uma avó da mesma cepa que a dele e, antes de me despedir da casa de frontaria arrepiada qque também foi dos descendentes de Afonso de Albuquerque, deixei dobrado em dois numa urna um bilhete onde dei a conhecer a não sei quem as minhas ideias maninhas sobre os deveres fundamentais do cidadão numa futura Declaração dos Deveres Humanos:
“Se em cada lugar que um homem estiver, está, por inerência, toda a Humanidade, é dever essencial de cada cidadão assumir a livre responsabilidade de que tudo aquilo que hoje fizer a bem da Humanidade, fá-lo-á para seu próprio bem no futuro.”
Depois, saí dali e regressei para dentro de mim a lamentar a tristeza de não ter visto a Pilar.

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Código Morse

02/01/2014

A mão dentro da mão…
E cada um de nós media
A febre e a pulsação
Que nos unia.
Mãozinha a mãozinha
Enchia a tua solidão
Na vastidão da minha.
Apertava-te uma vez
E tu apertavas duas.
Respondia apertando três
E punha as minhas mãos nas tuas
Num morse que se trocava
No calor de toques banais.
Dizia-te, nesse silêncio, que te amava
E quando a tua mão me apertava
Dizias que me amavas mais.

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Microconto VI: O Amor no vidrão

02/01/2014

Caminhas pela rua, cinzenta como o céu, cinzenta como tu, que és cada vez mais feito de nuvens e do lixo abraçado aos passeios. Tropeças no atacador e afundas-te no chão. E enquanto esperas que o vento leve de um milagre almofadado te estenda a mão, ouves uma voz castigadora dentro de ti a dizer:

—Já está!

Agradeces à mania que fez com que a tua mãe, durante anos a fio, quisesse fazer de ti um patinador artístico apontado às medalhas olímpicas. E, apesar de teres as mãos ocupadas com o fundo roto das algibeiras dos teus pensamentos, agarras o equilíbrio com os dentes, como se vencesses a gravidade à dentada.

Ris-te dessa voz a rir-te de ti. Não deixas de reparar no virtuoso passo de dança que acabaste de dar. Tu, um pé-de-chumbo. Senhor da delicadeza de um bulldozer num campo de lírios, terias deslumbrado qualquer baile de finalistas com aquela tontura elétrica em espiral a vacilar-te nas pernas. O problema é que o teu baile de finalistas foi há quinze anos, e tu, dobrado sobre as tuas memórias, levemente encostado ao vidrão, enquanto atas os atacadores, concluis: estás parado exatamente no mesmo ponto em que estavas há quinze anos. Continuas sem saber encantar com as palavras, continuas sem saber dançar. Mesmo que soubesses, continuas sem o par certo para ires flutuando sobre a superfície das melodias que a vida te vai consentindo quando estás desprevenido. E continuas sem saber patinar, não porque a tua mãe nunca teve dinheiro para te comprar uns patins, mas porque te deixas deslizar sem abrires os braços, porque te atiras de cabeça, sobes como um balão e não te importas com a aterragem. A velocidade dá-te altura, permite-te ver os sonhos de cima, respiras um ar mais fresco. Finalmente, vês os dias depois das horas. Não sabes como travar, mas também não temes o impacto. Dizes:

– Depois se verá.

Não é que não tenhas tentado aprender. Patinaste em cascas de banana e melancia sem ter partido uma perna, um braço, uma costela, a cabeça, só o coração; tentaste dançar nas festas dos bombeiros voluntários, sem nunca ter acertado o passo, só pisadelas no peito; arriscaste escrever versos que apenas deram mais profundidade ao ridículo e paragens fantasma no teu miocárdio. O caso também não é que não sintas nada. Sentes. Mas sentes como os vulcões: tremes por todos os tendões, estoiras de amor incandescente, queimas tudo à tua volta, os amigos, a família, tudo o que se possa meter à frente dos piroclastos da paixão com palavras prudentes:

– Olha que te vais aleijar…

A seguir à erupção ficas sem saber o que fazer com a cratera desoladora do teu desespero. Foi assim com a melhor amiga da tua prima. Riu-se de ti quando lhe deste aquele ramo de flores murchas polvilhadas de alergias. Foi assim com a loirinha cheia de sol no cabelo e raios de luz nas pestanas. Gabou-te os versos, mas ofendeu-se ao ler que querias vê-la através do brilho lânguido dos teus ósculos, porque, apesar de usar lentes de contacto, via muito bem. Foi assim com a filha dos emigrantes, dois anos mais velha que tu, a quem deixaste para sempre uma marca profunda da tua paixão furiosa nos nós dos dedos dos pés no segundo em que a puxaste para dançar uma música do Dino Meira na romaria de Verão. Foi assim com todas aquelas que não conseguiram comover-se com a tua vulgaridade, com o teu jeito desajeitado, com a forma mais pura com que lhes estendias uma passadeira corada de sorrisos sob os seus pés. E elas a pisar o vidro do teu sorriso, a fazer do teu coração os cacos dentro do vidrão junto a ti.

Enfias a cabeça para dentro desse recipiente cheio dos cristais reles da tua dor. Quase sufocas no azedo baço do teu desespero. Vasculhas cuidadosamente, com a ponta do olhar, para não te cortares, as sobras partidas do teu coração. Consegues ver cadáveres de garrafas de Gramujeira a sangrar tinto misturados a poliedros angulosos não correspondidos nas arestas uns dos outros. Achas impossível voltar a dar a configuração fechada do teu punho àqueles milhares de cacos desconjuntados.

Então, reparas: no ecoponto onde te encontras estão o papelão, o ponto destinado às embalagens de plástico e um último vaso gigante, reservado aos indiferenciados. Lá dentro, os restos de outros corações destroçados, de outros sentimentos desperdiçados, de outras paixões fora do prazo, de sonhos novinhos em folha dos quais ninguém soube tirar partido, simplesmente, porque não traziam manual de instruções.

Um ar de humildade cobre-te. Lembras-te da mentirinha que inventaste para ir ver a final da Liga dos Campeões ao café no dia de aniversário de uma por quem te apaixonaste num pestanejar, da puta da SMS em que o sujeito da frase não coincidia com o destinatário, da tua falta de paciência para com as inseguranças delas, quando gabavas os petiscos da tua mãe. Admites-te responsável por algum desses resíduos de vidas. Mas ficas impassível. Para ti, o sofrimento que, sem querer, infliges aos outros, significa o mesmo que o teu representa para quem involuntariamente to inflige a ti: meras trivialidades.

Enfrentas a estrada da realidade. Lês, gravada a corretor branco no poste do semáforo, fechada num perímetro de cupido, aquela conta de somar o teu nome ao nome da miúda que te consentiu a magia volátil do teu primeiro beijo. A tua primeira operação errada. Casou, teve três filhos – uma menina, um menino e o marido – sem pôr nada em causa, como a mãe dela e a tua fizeram. É dona de casa e eles donos da vida dela. Vais começar a dizer, como que a desconversar:

– Ah, o amor…

Olhas para trás. Não há problema. Dás graças a Deus: ninguém viu. Caíste. Vais voltar a cair. No amor, nunca nos vemos a perder o chão. Muito menos quando não sabemos patinar sobre os cacos intrincados do nosso coração.

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Desfecho

02/01/2014

Fechei a porta.
Ninguém mais me viu.
Ninguém sentiu
Os escombros que senti.
Ninguém ruiu
Quando caiu
O que me restava de ti.

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Fugitivo

02/01/2014

Abri o coração.
E a grande admiração
Ao senti-lo pulsar tão perto,
Foi a infinita dimensão
De o ver assim, aberto,
Maior que o meu próprio punho.
Vou deixá-lo secar o tempo certo,
Até ser só um deserto
Quando chegar o mês de Junho

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“Os Transparentes”

11/12/2013

A transparência pode ser um estado de alma. Através da leitura podemos estar em todos os lugares, responder à chamada de todos os enredos, ser tudo de todas as maneiras. Podemos ler, ver e sentir sem ser vistos nem sentidos, mas com a sensação de que o autor das palavras e os personagens que criou também nos estão a ler sem saberem que existimos. “Os Transparentes”, de Ondjaki, é um livro que nos arde com uma dor boa e diáfana nas mãos. Um livro que se acende num “vermelho-devagarinho” e nos transporta até à miscigenação de sensações provocada por Luanda.